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02.11.17 - O Globo


O Globo

 O Globo, coluna Flavia Oliveira, 2/11/2017

Sobrecarga feminina em casa e no trabalho impõe risco à agenda de alimentação saudável e segurança nutricional

Sem novo pacto familiar, vão acabar no colo das mulheres os estilhaços da guerra declarada pelos ativistas da nutrição saudável à indústria de alimentos ultraprocessados. É crescente a preocupação com o excesso de sódio, açúcar e gordura na dieta global, que atropelou culturas locais e empurrou para o excesso de peso homens, mulheres, jovens e crianças. A FAO, agência das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, em relatório sobre o Brasil estimou em 54% a proporção de adultos acima do peso e em 20% a de obesos; das crianças de até 5 anos, 7% estão com sobrepeso. Há um ano, três dezenas de organizações civis e uma centena de profissionais formaram a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável para influenciar hábitos, políticas públicas, regulação, tributação e publicidade na área. Um dos eixos de atuação envolve a substituição da comida industrializada pela caseira no lar, no trabalho, na merenda escolar. É aí que o assunto vira questão de gênero.

No Brasil, é flagrante a assimetria na divisão de afazeres domésticos de homens e mulheres. A dupla jornada foi medida. Em março deste ano, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou relatório sobre desigualdades de gênero no país. Por semana, as mulheres trabalham (em casa ou fora) 7,5 horas a mais que os homens. São 53,6 horas delas, contra 46,1 deles. Nove em cada dez brasileiras realizam atividades domésticas; entre os homens, metade. As proporções não se mexeram nos últimos 20 anos. Quanto menor a renda, maior a proporção de mulheres dedicadas à casa: 94% entre as que ganham até oito mínimos, 79% na faixa superior.

Ao longo do tempo, mulheres brasileiras agregaram escolaridade crescente, inserção no mercado de trabalho e responsabilidade financeira às atribuições domésticas e familiares. Quatro em cada dez lares são chefiados por mulheres (com ou sem cônjuge). Além de trabalhar e bancar as contas, cuidam da casa, dos parceiros, dos filhos e, crescentemente, dos idosos.

As transformações da vida moderna, a urbanização desordenada, o tempo escasso, a propaganda maciça influenciaram hábitos alimentares. A comida pronta, congelada tomou o lugar da caseira; os alimentos processados substituíram os itens in natura; as bebidas industrializadas tiraram do cardápio sucos e refrescos naturais. A população, inclusive infantil, com sobrepeso e obesidade se multiplicou. Junto, aumentou a incidência de doenças relacionadas à má nutrição, como diabetes e problemas cardiovasculares. O Instituto Nacional do Câncer atribui ao excesso de peso 13 em cada cem casos diagnosticados no país.

Além da atuação macro junto a governo, parlamentares, fabricantes e agências de publicidade, os especialistas da Aliança propõem o ativismo particular em prol da segurança alimentar e nutricional dos brasileiros. Isso envolve redução no consumo de alimentos ultraprocessados e/ou geneticamente modificados e aumento da ingestão de comida feita em casa e frutas in natura, retorno aos hábitos regionais e valorização dos produtores locais. É mudança que, de imediato, cheira à sobrecarga na jornada feminina.

Só que comer, lembra Inês Rugani, professora da Uerj e membro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), é processo que extrapola o ato de levar o garfo à boca: “Começa com a escolha do cardápio, a ida ao mercado, a seleção dos ingredientes. Passa por preparar, conservar e servir. Termina com a limpeza. Nada disso pode ser responsabilidade individual, mas coletiva. As famílias, a sociedade têm de se convencer disso”.

Alimentação adequada e segurança nutricional passam, assim, a integrar o cardápio da necessária repactuação de atribuições domésticas e familiares que afetam o acesso ao mercado de trabalho e a ascensão profissional das mulheres brasileiras. Sem novos arranjos, o saldo será de mais culpa, sobrecarga e desigualdade de gênero. Indigesto.



Link: http://bit.ly/IndigestoColuna

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