Farinata pouca

03.01.18


EPSJV/Fiocruz

 
"Esse é o alimento para todos. Aqui, você tem alimentos que estariam sendo jogados no lixo e que são reaproveitados com toda a segurança alimentar. São liofilizados e transformados num alimento completo. Em proteína, vitaminas e sais minerais. E a partir deste mês de outubro começa a sua distribuição gradual por várias entidades do terceiro setor. Igrejas, templos, sociedade civil organizada, além da prefeitura de São Paulo, para oferecer às pessoas que têm fome. Em São Paulo inicialmente. E, depois, em todo o Brasil”. O anúncio foi feito pelo prefeito da capital paulista, João Dória (PSDB) no dia 8 de outubro, durante o lançamento do programa ‘Alimento Para Todos’, resultado da sanção da lei 16.704 que institui a Política Municipal de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos. Era a estreia da farinata, um granulado que seria distribuído a grupos sociais em situação de vulnerabilidade e nas merendas em creches e escolas municipais. Processado a partir de alimentos próximos do vencimento ou fora dos padrões de comercialização, o produto, de composição ignorada, seria o caminho para “erradicar” a fome na maior metrópole brasileira. E no país.

A lei aprovada em São Paulo não é um caso isolado. Segundo levantamento do Conselho Federal de Nutricionistas, projetos praticamente idênticos foram apresentados ao longo de 2017 na Câmara Legislativa do Distrito Federal e nas assembleias legislativas de São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará. Em 12 de setembro, o mesmo texto foi aprovado na Câmara dos Deputados, de onde seguiu para o Senado Federal, onde tramita como PLC 104. Na sequência, em 4 de outubro, o primeiro projeto viraria lei com a chancela da Câmara dos Vereadores de São Paulo. Todos propõem políticas de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos. Há pouca coisa que diferencie um PL do outro. Além do texto propriamente dito, todos trazem as mesmas justificativas. Não é coincidência: eles têm a mesma origem.

Tão controversa quanto a composição nutricional é a composição política da proposta. “Este é um produto abençoado”, afirmou Dória, segurando um pote transparente adesivado com a imagem de Nossa Senhora no lançamento da farinata. Ao lado do político, estava o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, que duas semanas mais tarde, começaria a esclarecer o papel da Igreja Católica no projeto.

“Algum tempo atrás eu fui procurado pela senhora Rosana [Perrotti, dona da empresa Plataforma Sinergia] e por mais alguém que a acompanhava, um técnico, que apresentavam uma tecnologia de transformação de alimentos que, ao invés de serem desperdiçados, jogados fora, que fossem colocados à disposição de quem precisa”, disse ele aos jornalistas em uma coletiva de imprensa na Cúria Metropolitana no dia 19 de outubro. E continuou: “Elaborou-se – isso já fazem (sic.) creio que uns quatro anos –, um projeto de lei que teve a participação da PUC de São Paulo, sobretudo da Faculdade de Direito, da Cáritas da Arquidiocese de São Paulo, da própria Arquidiocese e da Plataforma Sinergia. E esse PL foi apresentado em várias instâncias”.

Foi assim que, em dezembro de 2013, o PL 6867 foi introduzido no Congresso Nacional pelo deputado federal Arnaldo Jardim (PPS-SP), que se licenciou do mandato e, hoje, é secretário de Agricultura e Abastecimento da gestão Geraldo Alckmin (PSDB). “Esse projeto que nós apresentamos aqui não é uma iniciativa do Arnaldo, é muito mais do que isso. É um processo coletivo”, disse o ex-parlamentar, falando na terceira pessoa, no programa Palavra Aberta, da TV Câmara. E continuou: “Eu acabei sendo convidado por Dom Odilo Scherer junto com um grupo de juristas de São Paulo ligados a várias entidades. Está, por exemplo, uma entidade chamada Plataforma Sinergia. E particularmente capitaneada pela Cáritas [organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB] para discutir esse projeto. Eles me apresentaram uma proposta, nossa consultoria aqui da Câmara aprimorou esse projeto e nós estamos apresentando”.

Só que de ‘coletiva’, rebatem os membros de fóruns responsáveis por acompanhar e deliberar sobre o tema da segurança alimentar e nutricional, a iniciativa não tem nada. Em nota de repúdio divulgada em 10 de novembro, o Conselho Nacional de Saúde afirmou que o PL “não foi discutido em nenhuma instância de controle social de políticas públicas que tratam do tema” como o próprio CNS e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que seriam os espaços “democraticamente legitimados para discutirem os direitos” dos brasileiros à alimentação, “assim como os possíveis impactos de uma proposta tão controversa e prejudicial à população”.

A nota foi aprovada pelo plenário do CNS, no qual a CNBB tem assento. “A Comissão Intersetorial de Alimentação e Nutrição pautou no pleno e a moção de repúdio ao programa do Dória e a todos os PLs similares foi aprovada. Nas conversas que tive, seja com a Pastoral seja com a CNBB, não teve nenhuma discordância em relação ao repúdio a essa iniciativa”, conta Paula Johns, diretora-geral da ACT Promoção da Saúde, entidade que integra a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável. “Ficamos surpreendidos com a participação da Igreja no momento do lançamento. A CNBB deveria se pronunciar sobre isso”, opina Chico Menezes, ex-presidente do Consea.

Procurada pela Poli para esclarecer se apoia os PLs apresentados país afora, a CNBB enviou nota afirmando que acompanha com “interesse” a “movimentação realizada pela arquidiocese de São Paulo, a Pontifícia Universidade de São Paulo e a Plataforma Sinergia”. A posição não é unânime dentro da Igreja. A Cáritas Brasileira, citada por Arnaldo Jardim como proponente do projeto de lei, negou participação em nota enviada à Poli e caracterizou como “inverdade” a afirmação do parlamentar. A entidade, ligada à CNBB, afirmou que historicamente participa do Consea. “É por meio deste órgão que, como representantes da sociedade civil, atuamos”, demarcou a nota assinada em conjunto pelo diretor-executivo da Cáritas, Luiz Cláudio Silva, e pela representante da entidade no Consea, Alessandra Miranda. “Quanto à construção da Plataforma Sinergia e o seu principal produto, a ‘farinata’, não temos informações e nem envolvimento com a idealização, pesquisa e desenvolvimento”, afirmam.

A Arquidiocese de São Paulo também foi procurada, mas não respondeu aos questionamentos da reportagem a tempo do fechamento desta edição. Já a CNBB confirmou sua participação na investida legislativa. “Acompanhamos (...) a discussão a respeito do modelo de projeto de lei que cria uma política de Erradicação da Fome e Promoção da Função Social dos Alimentos. A CNBB estará presente e interessada em iniciativas que busquem promover e defender a grandeza e a dignidade das pessoas”.

Há controvérsias, porém, se a farinata e a proposta por trás dela atendem ao princípio da dignidade humana. Nota do Consea publicada 13 de outubro destaca o avanço representado pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, editado pelo Ministério da Saúde em 2014. “O Guia enfatiza que a dimensão cultural e social da alimentação é fundamental para o exercício e expressão da cidadania”, diz a nota, que lembra que a última conferência da área aprovou um manifesto sobre a importância da “comida de verdade”, que além de saudável, não deve estar sujeita “a interesses de mercado”. Mas, tanto pelo método quanto pelo conteúdo, há quem aponte que os PLs têm ‘sinergia’ com os interesses das empresas do setor.

“Sob a justificativa de combater o desperdício, atende fundamentalmente aos interesses da indústria de alimentos. Os projetos de lei elencam um conjunto de medidas de isenção e subsídios para as empresas que transformariam produtos em vias de ultrapassar o prazo de validade nessa ração”, aponta Maria Emília Pacheco, da Fase.


Meu pirão primeiro
Tanto a lei municipal 16.704/17, que foi apresentada em 2016 pelo vereador Gilberto Natalini (PV) e instituiu a Política Municipal de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos em São Paulo, quanto os outros PLs, incluindo o que tramita no Congresso Nacional, preveem isenção de impostos para as empresas que doem produtos prestes a vencer.

Os incentivos variam de acordo com o nível de governo. No plano federal, o PLC 104 determina a isenção de IPI. Já a lei aprovada na capital paulista isenta de ISS e IPTU. Todos os PLs preveem incentivos como a concessão de crédito em condições facilitadas ou a criação de programas de financiamento voltados para o desenvolvimento de tecnologias, métodos, processos e equipamentos que se enquadrem na cinzenta categoria de ‘garantia da função social’ dos alimentos.

Depois do texto propriamente dito, os PLs trazem um anexo que justifica a aprovação da lei. Além de números retirados dos relatórios da FAO sobre fome e desperdício de comida no mundo, as referências ‘técnicas’ dos PLs são o Instituto Akatu e a Unilever, terceira maior corporação de alimentos do planeta. Paula Johns explica que o Instituto Akatu é uma espécie de braço social de grandes empresas. “Eles fazem parcerias com Monsanto, Souza Cruz, Unilever, inclusive. Nunca encaram a parte sistêmica do problema. Ficam na questão do comportamento do indivíduo, do consumidor, que vai mudar o mundo”, diz, acrescentando: “Já a Unilever é uma multinacional. Como a Nestlé, e as demais gigantes do setor, atua no sentido de abrir mercados e ampliar margens de lucro, lançando mão de estratégias absolutamente questionáveis do ponto de vista da saúde e da segurança alimentar e nutricional da população”.

Mas a empresa que esteve sob os holofotes durante as semanas em que se desenrolou a crise da farinata é a Plataforma Sinergia, que detém a patente da tecnologia de processamento de produtos fora dos padrões de comercialização e próximos do vencimento. Segundo a prefeitura de São Paulo anunciou, também caberia à Plataforma Sinergia a realização de workshops para “conscientização e viabilização de novas parcerias” com empresas. A capacitação contínua dos que atuam em processos, métodos e tecnologias voltados para a garantia da função social dos alimentos faz parte do plano de ação dos PLs.

“O processo de descarte custa 750 bilhões de dólares para a economia global. Nós vamos reduzir esses custos ao operacionalizar a farinata”, disse Rosana Perrotti, na coletiva de imprensa do dia 19 de outubro em que João Dória negou que os dispositivos de isenção fiscal presentes na lei sancionada por ele dias antes seriam usados pela prefeitura. Os custos de produção da farinata, garantiram na ocasião, sairiam do bolso dos empresários – sob o argumento de que seria mais barato fazer a parceria do que arcar com os custos envolvidos na logística de descarte de produtos vencidos. “Vamos colocar tecnologias em cima de carretas, como já fizemos, para poder processar dentro da indústria, do armazém, ou fundo de supermercado. E isso vai ser bancado pela própria empresa, que vai diminuir os custos com logística”, afirmou Rosana. Ninguém esclareceu como aconteceria a fiscalização desse processo – mesmo depois da crise da carne vivida pelo país no início do ano, quando se descobriu que diversas empresas maquilavam os produtos para disfarçar o vencimento. “Vocês estão vendo uma inovação que a gente espera que inspire o Brasil e o mundo. Porém, como vamos conseguir produzir em escala para conseguir colaborar para erradicar a fome? Somente através de uma política pública, somente através de lei”, afirmou a empresária.

“Trata-se da abertura de mercado para um produto esquisito, num contexto político muito difícil. O perverso desses projetos de lei é que eles voltam no tempo. Retiram a responsabilidade do Estado – afinal, as empresas vão ‘doar’, uma outra empresa vai processar e distribuir - e rebaixam a discussão. Uma pessoa desavisada tende a achar muito legal já que o texto diz que vai evitar o desperdício e ainda fazer caridade”, diz Paula, que arremata: “E você ainda consegue deixar os empresários felizes”.


“Ração gera reação”
Mas o fato é que a opinião pública não comprou a ideia da farinata. Se a reação à distribuição do produto nas cestas básicas distribuídas para famílias atendidas na rede socioassistencial já tinha sido grande, cresceu consideravelmente quando João Dória afirmou, em 19 de outubro, que até o fim do mês a farinata estaria na merenda das creches e escolas municipais. Para completar a polêmica, àquela altura já havia brotado da internet uma gravação de ‘O Aprendiz’, programa apresentado por Dória em 2007, em que o prefeito se dirige de forma irônica a um participante e afirma que “gente humilde, gente pobre, gente miserável” não tem hábito alimentar.

Depois deste anúncio, o Ministério Público do Estado de São Paulo divulgou que abriria investigação contra a prefeitura e a Plataforma Sinergia. Um grupo de artistas chegou a projetar na sede da prefeitura uma imagem em que se lia “ração gera reação”. A gestão Dória, primeiro, caracterizou a repercussão negativa da proposta como “desinformação generalizada promovida por alguns veículos de comunicação”. Mas, como a reação foi mesmo grande, primeiro recuou na intenção de introduzir o granulado na merenda escolar e, depois, abandonou a ideia de oferecer o produto para as populações atendidas na rede socioassistencial. No dia 8 de novembro, a deputada estadual Célia Leão (PSDB-SP) retirou o PL 19/17 da pauta. O texto, que criava a política estadual de Erradicação da Fome e Promoção da Função Social dos Alimentos, estava tramitando em regime de urgência. Contudo, a lei municipal ainda está valendo e os outros PLs continuam tramitando no Congresso e em outras casas legislativas do país.


Mais informações em: http://bit.ly/FarinataPouca




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