A cultura do excesso tem trazido muitos problemas, inclusive de saúde pública

22.06.18


Criança e Consumo

Em breve, direcionar publicidade para crianças pequenas não será mais possível. Não haverá mais espaço para isso na sociedade moderna, pois é uma estratégia muito agressiva, avalia Corinna Hawkes

Corinna Hawkes* é uma autoridade mundial no que diz respeito aos impactos do marketing na mudança de hábitos alimentares. Foi consultora da Organização Mundial da Saúde (OMS) na elaboração de uma série de resoluções para  que as nações regulamentem a comunicação mercadológica de alimentos com alto teor de sal, açúcar e gordura, e de bebidas com baixo teor nutricional.

Para ela, as políticas públicas são essenciais na prevenção e no combate a problemas de saúde decorrentes do consumo excessivo de determinados produtos. Com relação ao estresse causado pelo marketing de alimentos dirigido a crianças, Corinna reafirma dois dados de pesquisa do Alana realizada pelo Datafolha: primeiro, uma das principais preocupações dos pais em relação aos filhos é a alimentação saudável; segundo, os pedidos mais frequentes das crianças são as guloseimas.

Em entrevista ao Criança e Consumo, declarou que “todos os pais, engajados ou não nessa questão, querem que os filhos se alimentem. Com isso, cria-se uma vulnerabilidade com relação à alimentação. Quando uma criança chora e grita porque quer uma comida qualquer, muitos pais pensam: “Pelo menos ela vai comer alguma coisa”.

Criança e Consumo – O que aconteceu com a indústria de alimentos nos últimos 30 anos que fez o investimento emmarketing crescer tanto e se tornar tão agressivo?

Corinna Hawkes – Acho que, hoje, a indústria de alimentos investe mais dinheiro em criar valor para o produto do que no produto em si. Antes da década de 80, as empresas produziam uma variedade menor de produtos. Elas tinham uma ou duas marcas muito populares e faziam muito dinheiro com essas marcas. Depois dos anos 80, o imperativo para ganhar dinheiro tornou-se maior. As empresas se consolidaram e tornaram-se mais poderosas. Essa consolidação, aliada ao baixo custo dos ingredientes, possibilitou que a indústria agregasse valor aos produtos. Em outras palavras, as pessoas gastam mais dinheiro em um produto porque ele foi anunciado e se tornou mais valioso para o consumidor. Não é apenas beber uma bebida. É beber um estilo de vida. Vi, recentemente, uma entrevista do gerente da Gucci em que ele dizia: “Nós não vendemos bolsas e sapatos. Nós vendemos uma ideia”. As grandes empresas mudaram, transformaram a competitividade de mercado. Isso significa que as pequenas empresas precisam responder e fazer marketing de seus produtos.

CeC – Muitas das empresas menores não têm recursos para investir em publicidade. É por isso que elas investem em outras coisas, como na embalagem?

CH – Sim, exatamente. Elas tentam outras estratégias para agregar valor aos seus produtos. Nesse sentido, os preços estampados nas embalagens são muito importantes. E, muitas vezes, o produto é mais barato porque a empresa não investiu em publicidade. As empresas menores também copiam as grandes marcas – são as chamadas B Brands.

CeC – Com relação à disposição dos produtos nas prateleiras de supermercado, isso de fato influencia a escolha do consumidor?

CH – Se você pesquisar na literatura de mercado ou de negócios, fica claro que o design de uma loja é um ponto relevante para convencer o consumidor a comprar mais. Existe uma estatística americana que diz que 70% das escolhas de compra são feitas pelo consumidor dentro da loja. Então, isso significa que, mesmo que ele tenha visto anteriormente as publicidades, a decisão final é feita na própria loja. Assim, o potencial de influência da disposição dos produtos dentro dos supermercados é muito alto – e os donos das grandes redes e dos pequenos mercados sabem disso. Eles colocam os produtos em diferentes alturas, em diferentes seções da loja e assim por diante. E isso não é feito de forma impositiva; as redes procuram entender os anseios de seus consumidores e traçam estratégias para atender a esses anseios. O consumidor não é tolo, por isso, a estratégia dos mercados é moldar o espaço de acordo com determinados perfis.

Isso é muito evidente na época da Páscoa, quando os ovos de chocolate são colocados também, estrategicamente, nas prateleiras mais baixas para atrair a atenção das crianças. Eu tenho uma filha de 2 anos, e é impossível negar o apelo das embalagens. Muitas vezes, ela nem gosta do produto, mas pega-o por conta da embalagem, que vem com desenhos, é colorida… Isso não se restringe apenas aos alimentos processados, mas engloba também frutas e outros produtos. Então, além de todas as pesquisas acadêmicas e de toda a literatura em torno dessa questão, ainda é preciso considerar a experiência de cada mãe, que passa por isso todos os dias.

 

CeC – A questão da alimentação dos filhos é de extrema importância para os pais, até por ser uma necessidade  básica, certo?

CH – Sim, o alimento é, de fato, uma necessidade. Brinquedos são importantes, mas eles podem ser feitos de um pedaço de galho, de uma folha caída no chão… Com alimento, não é assim. E todos os pais, engajados ou não nessa questão, querem que os filhos se alimentem. Com isso, cria-se uma vulnerabilidade com relação à alimentação. Quando uma criança chora e grita porque quer uma comida qualquer, muitos pais pensam: “Pelo menos ela vai comer alguma coisa”. Muitas crianças comem muito bem e de tudo, mas outras não. Muitas têm acesso a alimentos frescos e refeições feitas na hora, mas outras não. A maioria da população não tem ajuda em casa, os pais trabalham, o tempo é escasso. Nesse cenário, se a criança comer, qualquer que seja a comida, os pais já se sentem aliviados.

CeC – Você acha que as empresas alimentícias estão mudando e tentando entender o impacto desses apelos na sociedade? 

CH – Acho que as empresas já sabem que os pais estão cada vez mais preocupados com essa questão, pelo menos na Europa, na América do Norte e na Austrália. Nesses lugares, pessoas de influência que também são pais têm escrito cartas para a imprensa, colocando essa discussão na pauta do governo. Dessa forma, a indústria é obrigada a mudar sua postura. As empresas já perceberam ao menos duas coisas. A primeira é que, em breve, direcionar publicidade para crianças pequenas não será mais possível. Não haverá mais espaço para isso na sociedade moderna, pois é uma estratégia muito agressiva. Por isso mesmo, a indústria tenta se antecipar com acordos de autorregulamentação. Em segundo lugar, uma importante mudança (talvez mais importante do que a primeira) é que as empresas passaram a vender seus produtos para os pais com a ideia de que são alimentos saudáveis para seus filhos.

CeC – Mas essa é uma boa mudança ou não?

CH – Para mim, essa é uma das questões mais importantes para a elaboração de regras e resoluções. Uma embalagem de biscoitos que vem com informações de que o produto contém alto teor calórico, grande quantidade de gordura e é enriquecido com cálcio deixa uma dúvida na cabeça do consumidor: o cálcio é um nutriente necessário ao desenvolvimento infantil? Soa como algo positivo. Mas e todo o resto? O consumidor assume que ele pode confiar naquela informação, e a indústria se aproveita disso. Isso é problemático porque dá muito poder à indústria de alimentos. Então, quando uma criança começa a pedir determinado alimento, a tendência é que os pais digam: “Nessa marca eu posso confiar”. Portanto, sim, a indústria tem se transformado profundamente. Agora, será que é uma mudança positiva? Não tenho tanta certeza.

CeC – Algumas empresas assumiram compromissos públicos e deixaram de anunciar para crianças abaixo de 6 anos de idade. Existe uma diferença entre uma criança de 6 e uma de 8 anos, por exemplo?

CH – Esse tipo de resolução está pautada em como crianças de diferentes faixas etárias respondem às campanhas publicitárias. Existe uma pesquisa feita na década de 80 na Suécia que afirma que por volta dos 12 anos de idade a criança pode compreender a publicidade. Antes disso, a criança passa por vários estágios. Por exemplo, com 6 anos, ela reconhece marcas, mas não entende que a publicidade está tentando convencê-la a comprar algo. Entre 6 e 12 anos, ela consegue reconhecer a propaganda, mas sem entendê-la plenamente. Baseadas nisso, muitas empresas assumem que por volta de 6 anos o público infantil já pode ser alvo de ações de publicidade. No meu entendimento, isso não diminui a influência e o efeito da publicidade na criança pois ela continua sendo bombardeada sem condições plenas de compreender tais mensagens. Mas ainda há outra razão para que as empresas deixem de anunciar para crianças: os pais rejeitam esse tipo de comunicação das empresas com seus filhos antes dos 6 anos, porque elas são muito pequenas.

CeC – No Brasil, esse debate está quase todo centrado no problema da obesidade. Mas não é só isso, certo?

CH – Desde os anos 80, tanto a indústria como os hábitos de consumo mudaram drasticamente em todo o mundo. A cultura do consumo de alimentos mudou. Nas nações, existem pessoas magras e gordas. O que tem acontecido, principalmente nos últimos 25 anos, é que o número de pessoas acima do peso aumentou. É um grupo grande de pessoas mais vulneráveis aos apelos de consumo. Nós temos que mudar essa cultura do excesso, que tem trazido muitos problemas, inclusive de saúde pública. Só que a maior parte das informações sobre alimentos vem da indústria e de suas estratégias de marketing. Outra questão preocupante é a demonização de alimentos. O que eu tento fazer no meu trabalho é olhar para o alimento de forma mais ampla. Na minha opinião, as políticas públicas deveriam tentar mudar essa cultura e não apenas restringir, regulamentar e, muito menos, demonizar determinados alimentos.

CeC – O que você está pesquisando aqui no Brasil?

CH – Estou fazendo uma pesquisa sobre preços de alimentos. A minha preocupação com o preço é saber o quanto o consumidor valoriza determinado produto. Se o alimento tiver um valor cada vez maior, o consumidor estará mais disposto a pagar mais. Precisa haver um equilíbrio entre valor e preço. E a questão da publicidade entra nesse debate porque adiciona valor a esses produtos. Outro projeto que estou desenvolvendo diz respeito à relação entre a agricultura familiar e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Trinta por cento das merendas escolares devem ter origem na agricultura familiar. Estou estudando as regras que basearam essa ação.

CeC – Você acha que é possível alimentar a população mundial sem essa estratégia comercial tão agressiva da indústria alimentícia? É possível ter alimentos saudáveis para todos?

CH – Eu acredito que uma das respostas para reverter os hábitos não saudáveis é mudar a maneira como os alimentos são fornecidos para a população. E acho que é perfeitamente possível que todos tenham acesso a uma alimentação saudável. Não acredito que isso seja resolvido com aquela ideia dos mercados locais: não acho que tudo precisa ser local ou necessariamente orgânico. Mas acho que a reorganização de como os alimentos frescos são distribuídos deve ajudar. O importante é olhar para o problema como um sistema. Então, quando comecei a pesquisar sobre marketing, imediatamente questionei porque as empresas estavam em busca disso e quis me aprofundar nos impactos da globalização na produção como um todo.

* Confira a íntegra deste texto, que integra o Criança e Consumo Entrevistas, volume sete, publicado em 2010. Confira a íntegra.

http://criancaeconsumo.org.br/noticias/obesidade-infantil-entrevistas/




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