O Brasil na contramão e os incentivos fiscais às bebidas açucaradas

12.07.19


Tathiane Piscitelli, Valor

O imbróglio recente sobre a tributação dos concentrados de refrigerantes, em sua extensa maioria comercializados a partir de fábricas localizadas na Zona Franca de Manaus, teve início na gestão de Michel Temer, que reduziu a alíquota do IPI incidente na circulação de tais bens para 4% - antes da medida, os concentrados eram tributados a 20%.

A medida gerou reação da indústria: a despeito da redução nominal da alíquota, na prática, alegaram, haveria aumento da carga tributária incidente sobre o setor, pois uma alíquota menor significaria menos créditos de IPI passíveis de apropriação na próxima etapa da cadeia.

Em resposta às demandas da indústria, ainda em 2018, foi publicado o Decreto nº 9.514, que previu redução gradual das alíquotas a partir de 2019: entre janeiro e julho, 12%; entre julho e dezembro, 8%. Após, em 2020, seria retomada a alíquota de 4%, nos termos do Decreto nº 9.394/2018.

Recentemente, o governo de Jair Bolsonaro recuou ainda mais. Em razão da publicação do Decreto nº 9.897, este ano, a alíquota de 8% somente será aplicada até o fim do mês de setembro. Entre outubro e dezembro, o IPI incidirá à alíquota de 10%.

Como já destaquei em outros textos nesta coluna, a discussão passa pela adequada tributação de alimentos ultraprocessados e as escolhas políticas que o Brasil tem feito nessa área.

A tributação mais gravosa de bebidas açucaradas é uma realidade mundial. Portugal, Reino Unido, França, México e Chile são exemplos de países que adotaram tal medida. O modelo mais frequente é de um tributo específico sobre a circulação ou produção do bem, cujo objetivo geral é aumentar o preço do produto, de modo a desestimular o consumo. Há muita controvérsia em torno do tema e o ponto central costuma estar na efetividade das medidas na redução do consumo e, consequentemente, nos índices de obesidade do país.

A resposta a essa questão deve ser dada por análises empíricas e o México é um caso exemplar. Estudos publicados em 2017, conduzidos por economistas do Instituto Nacional de Saúde Pública daquele país, atestam a efetividade da maior tributação na redução do consumo: em 2014, ano de introdução do imposto, a compra de água cresceu 16,2%, em comparação com os anos de 2008 a 2012, e o consumo de bebidas açucaradas caiu 6,3%. A maior redução ocorreu em residências de baixa ou média renda.

Ao lado disso, há reflexões importantes a serem feitas quanto ao desenho adequado do tributo. Considerações sobre a alíquota, que não pode ser simbólica, sob pena de não impactar o preço, bem como sobre a forma e o momento da tributação. Para que tenha sucesso, a estruturação de uma política tributária desse tipo deve ser amplamente debatida.

No Brasil, no entanto, estamos muitos passos atrás. O debate atual sequer está centrado na introdução de um "sugar tax". Ele se concentra na perpetuação de benefícios fiscais para bebidas ultraprocessadas. É passada a hora de discutirmos a tributação adequada desses bens.

A aprovação do Decreto 9.897/2019 representa evidente retrocesso nesse debate. Ao possibilitar alíquotas maiores incidentes sobre concentrados de refrigerantes, o governo concorda com o acúmulo de créditos nos adquirentes de tais bens. 

O fato de as grandes empresas estarem situadas na Zona Franca de Manaus e remeterem os produtos sem a incidência do IPI, mas com a possibilidade de apropriação dos créditos fora da ZFM (conforme recente decisão do Supremo), apenas piora o cenário em termos do incentivo a essa indústria, ao lado do prejuízo aos pequenos produtores, localizados fora da região incentivada.

Em 2017, o Brasil foi pioneiro em se comprometer, perante a Organização Mundial de Saúde (OMS), a adotar medidas efetivas para o combate à obesidade, como parte da “Década para Ações em Nutrição 2016-2025”, da Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo o termo firmado com a OMS, até 2019 o país envidaria esforços concretos no sentido de (i) estacionar o crescimento da obesidade entre adultos, cujo nível, à época, era de 20,8%; (ii) reduzir em pelo menos 30% o consumo de bebidas açucaradas entre adultos; e (iii) aumentar em pelo menos 17,8% a proporção de adultos que ingerem, regularmente, frutas e vegetais.

Ceder a pressões do setor de bebidas açucaradas não ajudará o Brasil a atingir nenhuma dessas metas. Seguiremos como aqueles que, em vez de discutir a tributação adequada e proporcional de tais bens, opta pelo incentivo às bebidas ultraprocessadas, em detrimento da saúde e das contas públicas.

https://www.valor.com.br/legislacao/fio-da-meada/6340567/o-brasil-na-contramao-e-os-incentivos-fiscais-bebidas-acucaradas




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