O futuro da comida

01.11.19


Época

Na rede de supermercados Carrefour, uma das maiores do país, a venda de hambúrgueres feitos à base de plantas, iniciada em maio deste ano, dobra a cada 30 dias. No concorrente Pão de Açúcar, que começou a oferecer esse produto há quatro meses, 30% dos hambúrgueres vendidos já são desse tipo. Olhando para a frente, a expectativa de ambas as redes é de crescimento de vendas. “Em breve ( o produto ) deve superar 10 mil unidades por mês”, disse Noël Prioux, presidente da operação brasileira do Carrefour. Em julho, a cadeia de fast-food Burger King passou a vender sanduíches de carne vegetal em suas lojas brasileiras. Em breve, a Fazenda Futuro, pioneira na produção de hambúrguer de planta no Brasil, lançará carne moída e almôndega vegetais, que serão comercializadas em parceria com a rede Spoleto, especializada em comida italiana.

Na BRF, dona das marcas Sadia e Perdigão, a meta é não ficar apenas no hambúrguer. A empresa quer transformar a carne de pratos prontos, como pizzas e lasanhas congeladas, em alimentos que possam atender à nova demanda por carne feita a partir de plantas. “Até 2023, o desafio é que 10% da receita venha de produtos vegetais”, disse Fabio Bagnara, diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da BRF. As concorrentes JBS e Marfrig também estão nessa briga. A consultoria Euromonitor estima que as vendas de janeiro a dezembro da categoria “substitutos da carne” somarão R$ 120 milhões. Confirmada a projeção, 2019 deverá entrar para a história como o ano da virada das opções feitas à base de plantas. “Enquanto as vendas de carne processada crescem 7% ao ano, estimamos que a categoria de substitutos de carne cresça de 20% a 30%. Considerando só os hambúrgueres vegetais, a estimativa deverá passar de 40%”, disse Maria Alice Narloch, analista da Euromonitor.

O número de startups que investem em pesquisas para encontrar “a carne vegetal perfeita” deu um salto neste ano na maior feira de alimentos do mundo. Foto: Vyacheslav Prokofyev / TASS via Getty Images

O número de startups que investem em pesquisas para encontrar “a carne vegetal perfeita” deu um salto neste ano na maior feira de alimentos do mundo. Foto: Vyacheslav Prokofyev / TASS via Getty Images

O que acontece no Brasil é um reflexo de uma tendência mundial. Na edição mais recente da Anuga, a maior feira de alimentos do mundo, realizada no mês passado em Colônia, na Alemanha, 253 empresas expositoras ofereceram carne a partir de extratos de vegetais. Em 2017, elas eram apenas 69. Em junho, a gigante suíça Nestlé anunciou que fábricas nos Estados Unidos e na Europa estavam sendo adaptadas para a produção de um hambúrguer à base de uma mistura de extratos de cenoura, beterraba e pimenta que promete manter uma textura similar à da carne mesmo depois de levada à brasa. Startups também estão na busca pelo bife vegetal perfeito. Em maio, a pequena empresa californiana Beyond Meat abriu capital na Nasdaq, mercado de ações de negócios de tecnologia em Nova York, num processo que animou os investidores. A ação da companhia, que estreou a US$ 65, em dois meses estava em US$ 234. Hoje o papel é cotado na faixa de US$ 110, garantindo um valor de mercado acima de US$ 5 bilhões — relevante para uma empresa que começou a vender produtos em supermercados dos EUA, Canadá e Reino Unido há apenas três anos.

 

Assim como no exterior, no Brasil o público-alvo é um grupo heterogêneo, que inclui veganos, vegetarianos, gente que quer diminuir a quantidade de carne que ingere e também aquelas pessoas que levam em consideração os efeitos dos hábitos de alimentação na sustentabilidade. Segundo o Ibope, 14% dos brasileiros se autodeclaram vegetarianos — 6 pontos percentuais a mais do que em 2014. Um levantamento divulgado em outubro pela consultoria global Nielsen mostra que 42% dos 30 mil brasileiros entrevistados on-line disseram estar mudando a dieta para reduzir o impacto no meio ambiente. De acordo com uma pesquisa on-line da consultoria Euromonitor feita com 1.820 brasileiros, 25% afirmaram estar tentando reduzir o consumo de carne. “Do total de entrevistados, quase 70% tentam causar um impacto positivo no meio ambiente por meio de ações de seu dia a dia”, disse Narloch, da Euromonitor. Entrevistas da consultoria de tendências Kantar com 2 mil consumidores, divulgadas em outubro, revelaram que 22% reduziram o consumo de carne no período entre abril do ano passado e abril deste ano. Entre os argumentos usados pelos ambientalistas contra o consumo excessivo de carne estão o desmatamento para ampliação de pastagens, a produção de alimentos para rações e a emissão na atmosfera de gases do efeito estufa.

Prato de carne suína feita a partir de plantas em restaurante na Europa. Foto: Paul Yeung / Bloomberg via Getty Images

Prato de carne suína feita a partir de plantas em restaurante na Europa. Foto: Paul Yeung / Bloomberg via Getty Images

Gustavo Guadagnini, de 30 anos, há dois anos trabalha na The Good Food Institute, uma ONG americana que recebe recursos de bilionários como Bill Gates e os fundadores do Facebook para investir em pesquisas de tecnologias de carne vegetal. “As pessoas, em geral, e os jovens, em particular, não conseguem mais dissociar um alimento dos problemas no meio ambiente que sua produção causa”, disse Guadagnini, que virou uma espécie de evangelizador dessa causa no Brasil. Há pouco mais de cinco anos, ele virou vegano na tentativa de perder peso — na época, tinha 150 quilos, dos quais conseguiu eliminar 60. De quebra, largou uma carreira na multinacional Whirlpool para expandir a Good Food Institute no Brasil. De lá para cá, assessorou a Seara, da JBS, e a Fazenda Futuro. Esta última, fundada pelo carioca Marcos Leta, de 37 anos — dono também da marca de sucos Do Bem —, colocou sua carne vegetal no mercado em maio do ano passado. Hoje direciona parte da produção às 1.100 lojas do Bob’s, uma das principais cadeias de fast-food do país. Para isso, Leta conta com uma equipe de engenheiros de alimentos que leva em consideração a opinião dos consumidores nas redes sociais para modular um sabor que agrade ao máximo de paladares possível. “Queremos lançar o primeiro molho à bolonhesa à base de plantas”, disse Leta.

 

Apesar desses avanços, a nutricionista Bruna Kulik, consultora da ACT Promoção da Saúde, uma ONG com atuação no Rio de Janeiro e em São Paulo, alerta que os consumidores não devem se deixar enganar pelas aparências. “Em muitos casos, a indústria se apropria de uma narrativa de alimento saudável, vegano, clean, plant-based, mas continua a produzir alimentos ultraprocessados, que pouco têm a ver com comida de verdade. São apenas aparência e propaganda”, disse, ressaltando a necessidade de saber como os alimentos são produzidos. Entre os chefes de cozinha, as novidades estão longe de causar boa impressão. Recentemente, a argentina Paola Carosella, jurada do reality show culinário MasterChef , da Band, usou as redes sociais para dar sua opinião. “Experimentei por curiosidade o ‘hambúrguer’ de plantas ‘sabor’ carne. Não é hambúrguer, não tem gosto de carne, nem textura de carne, o que é óbvio, pois não é carne. Gorduroso, pastoso, desagradável. Uma b... ultraprocessada oportunista no momento de mais confusão alimentar da história”, escreveu. Para além das críticas ao sabor, há também a crença de que, na ânsia de “querer salvar o mundo”, muita gente está abraçando avidamente qualquer coisa com algum apelo de marketing “saudável”. A carioca Cristiana Beltrão está há duas décadas à frente de restaurantes e da marca de temperos Bazzar. Ela contou que viu a preocupação com saúde ligada aos alimentos se expandir em 20 anos, tendo chegado ao ápice agora. A demanda refletiu-se em mudanças no cardápio. “Identificamos os pratos vegetarianos há pelo menos 15 anos, os orgânicos há 13. Desde o ano passado, passei a destacar os alimentos veganos”, disse Beltrão, que ainda não se aventurou a oferecer um hambúrguer vegetal a seus clientes.

 

A primeira versão de um substituto vegetal da carne surgiu em 1901, quando o americano John Harvey Kellogg, o criador da marca de cereais que leva seu nome, recebeu uma patente de um produto feito de glúten de trigo e amendoim. Na década de 1980, surgiram hambúrgueres vegetarianos feitos de milho, batata, proteína texturizada de soja, legumes, tofu, cogumelos e cereais. A receita atual muda de empresa para empresa, mas, de modo geral, continua levando ervilha, soja e outros legumes. Uma quebra com o passado, porém, se deu graças a um avanço tecnológico. Testes em laboratórios têm permitido novas reações químicas entre carboidratos e aminoácidos ou proteínas que resultam em um produto com textura e gosto mais próximos da carne. O hambúrguer vegetal é o produto que está fazendo mais barulho, mas não está sozinho quando o assunto é o futuro da comida.

Na Europa, vai começar a ser comercializada no ano que vem uma molécula capaz de substituir o açúcar, mas com zero caloria. Camarões e peixes feitos a partir de células-tronco já são realidade. A DSM, uma companhia global de origem holandesa que atua nas áreas de saúde, nutrição e materiais, mantém um centro de biotecnologia perto de Amsterdã com mais de 200 cientistas. A empresa estabeleceu uma joint venture com o grupo francês Avril e vai produzir uma proteína vegetal a partir de canola, não modificada geneticamente. Ela será usada como base para a produção de bebidas, produtos lácteos, assados e barrinhas. A previsão é que já esteja disponível comercialmente no fim de 2021. “A empresa também desenvolveu um sal mineral para animais, que melhora a produção de carne e leite. Para reduzir a emissão de metano em 30% pelos bovinos, desenvolvemos um suplemento alimentar que é adicionado à dieta regular, sem quaisquer efeitos adversos sobre o bem-estar do animal”, disse Maurício Adade, presidente na América Latina da DSM.

No Laboratório de Nutrição e Metabolismo, um dos 50 da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade de Campinas (Unicamp), no primeiro andar do prédio — forrado de tubos de ensaio, bancadas com microscópios e uma máquina que desidrata frutas ao fundo —, o professor Mário Maróstica Júnior, chefe do Departamento de Alimentos e Nutrição, fez uma descoberta. Na busca por alimentos como frutas e vegetais que contenham componentes bioativos, que previnem doenças e retardam o envelhecimento, ele e sua equipe elaboraram um extrato de jabuticaba que ajuda na prevenção do câncer de próstata. A novidade já foi patenteada por uma empresa e deverá chegar ao mercado em 2020. Testes em animais mostraram que o consumo de jabuticaba também ajuda na recuperação da perda de memória provocada pela doença de Alzheimer. “O mundo começou a prestar atenção na jabuticaba brasileira” disse Maróstica Júnior.

Na mesma linha de pesquisa de frutas, a cientista de alimentos Glaucia Pastore descobriu propriedades anticâncer e antioxidação no araticum, uma fruta natural do Cerrado brasileiro parecida com a fruta-do-conde. “Hoje há uma maior preocupação por alimentos mais saudáveis, que previnem doenças e retardam o envelhecimento. Para que as pessoas utilizem esses alimentos de uma forma correta, é preciso estar baseado em muita ciência, para não incorrer em modismos ou danos à saúde”, disse Pastore, coordenadora do Laboratório de Bioaromas e Compostos Bioativos da Unicamp, considerada uma das cinco melhores universidades do mundo no ramo de ciências alimentares de acordo com o Global ranking of academic subjects de 2019, da Shanghai Ranking Consultancy. Na Faculdade de Engenharia de Alimentos, um time de doutores e mestres vasculha as propriedades de alimentos e estuda como as bactérias “boas” do intestino ajudam a melhorar o funcionamento do eixo cérebro-intestino, via alimentos probióticos, como iogurtes, a bebida fermentada quefir e o chá de kombucha. Outra linha de pesquisa promissora é produzir proteína a partir de insetos, como o gafanhoto.

O futuro da comida, com a ajuda da ciência, pode ser menos indigesto para o planeta, sem ser intragável para a humanidade.

https://epoca.globo.com/sociedade/o-futuro-da-comida-24054424




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