O perigo à mesa

19.12.19


O Globo

Passava pouco das 7h da manhã de um dia útil, quando da escada rolante que leva à sala de embarque avistei o casal e duas crianças sentados no saguão do Aeroporto de Congonhas (SP). O menino, de não mais de 3 anos, comia batata frita retirada de um saco metalizado de marca conhecida. A cena lembrou da urgência de escrever sobre a insegurança alimentar decorrente da dieta ancorada em comida ultraprocessada. O Brasil tem terra e agricultura produtiva; redes de churrascarias rodízio que sucumbiram à demanda por hábitos saudáveis e redução do desperdício. E tem povo na miséria; pobres obesos pelo consumo de alimentos inadequados; e, de quebra, 382 agrotóxicos liberados nos dez primeiros meses do governo Jair Bolsonaro, maior número de registros desde 2005. Tamanha desigualdade, sempre ela, permite que, no país com longevidade crescente, parcela expressiva da população tenha a existência abreviada pela má qualidade da alimentação.

Esta semana, a Anvisa aprovou resolução que prevê o banimento, a partir do réveillon de 2023, do uso de gordura parcialmente hidrogenada em alimentos industrializados, como margarina, biscoito, bolo, massa instantânea, sorvete, chocolate, pratos congelados. A transição começa agora. Em julho de 2021, a proporção de gordura trans não poderá ultrapassar 2%. No comunicado à imprensa, a vigilância sanitária informou que o ingrediente é usado há décadas pela indústria de alimentos e entrou em suspeição nos anos 1990, pelo risco de desenvolvimento de doenças cardiovasculares. A Organização Mundial da Saúde (OMS) vem publicando recomendações de redução de consumo desde 2004. Espontaneamente, alguns fabricantes diminuíram ou eliminaram a gordura trans de produtos. Em 49 países — entre os quais EUA, Canadá, Chile, Argentina, África do Sul e nações da União Europeia — já existem medidas de restrição. No mundo, a gordura trans está associada a 500 mil mortes por ano; nas Américas, a 160 mil. No Brasil, foi responsável em 2010 por 18.576 mortes, 11,5% do total de óbitos por doenças coronarianas.

A tragédia nacional é que há grupos de habitantes mais expostos que outros às más condições de alimentação. Nas faixas de maior renda, é crescente o consumo de orgânicos e cadente o de comida processada. Entre os mais pobres, alimentos in natura irrigados com agrotóxicos; biscoitos, massas, snacks e doces ganhando espaço em refeições, lanches e até na merende escolar. A escala de produção derrubou os preços e a logística de distribuição viabilizou a entrega, tornando os ultraprocessados duplamente acessíveis à baixa renda. Para completar, a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho combinada à assimétrica divisão de tarefas nos lares abriu espaço para alimentos prontos, em detrimento da recomendável comida caseira. Não é por acaso que o Mapa da Obesidade da Abeso, entidade dedicada ao estudo do tema, estima que 50% dos brasileiros e 15% das crianças estão acima do peso.

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Em 2013, o IBGE estimou em 14,7 milhões o total de domicílios brasileiros expostos à restrição alimentar por falta de dinheiro para comprar comida. A ameaça de fome rondava um em cada quatro lares (22,6% do total) e 52 milhões de habitantes. Em 3,2% das residências, o quadro era grave, com 7,2 milhões de adultos e crianças deixando de comer. As políticas públicas de combate à fome ganharam atenção na virada do século, a ponto de o país ter saído do Mapa da Fome da ONU em 2014. A recessão aguda até 2016 deteriorou as condições de vida, com desemprego galopante e escassez de renda. No ano passado, havia 13,5 milhões pessoas com renda mensal per capita inferior a R$ 145 por mês — equivalente a U$S 1,90 (em paridade de poder de compra) por dia, linha de miséria do Banco Mundial (Bird). A proporção, de 6,5%, foi a maior em sete anos.

São mais vulneráveis os domicílios chefiados por mulheres negras sem cônjuges e com filhos menores de 14 anos. Quase um em quatro (23,7%) está na pobreza extrema, que se relaciona com falta de comida. Quase metade das crianças brasileiras (42,3%) vive em lares com rendimento inferior a US$ 5,50 por dia (R$ 420 por mês), referência do Bird para a pobreza. Entre os pobres, o risco é a dieta ancorada em comida barata, de baixa qualidade, seja pelo excesso de gordura, açúcar e sal, seja pelo abuso de agrotóxicos. No Brasil de hoje, o Menino Jesus nasceria condenado às piores condições de alimentação, em razão do fosso da desigualdade nunca combatida e dos atos de um governo mais atento aos interesses da produção que ao povo.

https://oglobo.globo.com/opiniao/o-perigo-mesa-24149112




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