Supremo terá de enfrentar o delicado tema do tabagismo infantil

31.01.18


Ana Flávio de Oliveira - ConJur

Encontra-se na pauta do Plenário do Supremo Tribunal Federal, do dia 1º de fevereiro, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.874, proposta pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). A ação versa sobre a validade da Resolução da Diretoria Colegiada 14/2012, da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), que havia proibido o uso de aditivos flavorizantes e aromatizantes em diferentes produtos fumígenos. Desde o ano de 2013, sua eficácia foi suspensa por medida cautelar deferida pela relatora do caso na corte, ministra Rosa Weber.

Basicamente, há dois pontos a serem enfrentados pela corte no âmbito da ADI 4.874, ambos especialmente delicados e relevantes.

O primeiro diz respeito aos limites da capacidade normativa das agências reguladoras. Sabe-se que inexiste marco legal geral para essas entidades no Brasil, cada uma delas disciplinando-se pela própria lei instituidora, o que, não raro, aponta para um cenário de incertezas sobre a identidade desses entes no país. Criadas, em sua maioria, no decorrer da década de 1990, as agências reguladoras federais podem importar em atuação estatal de forma indireta em mercados tão díspares quanto cinema e energia elétrica, ora incidindo sobre setores em que a atuação privada é a regra, ora incidindo sobre setores em que vigoram serviços concedidos. Toda essa situação, no entanto, muito embora possa levantar o questionamento sobre a real necessidade de existência de algumas dessas entidades, não impediria a definição de um modelo geral a todas aplicável e que concedesse unidade ao formato de atuação do Estado na economia por meio da administração pública indireta e autárquica.

É bem verdade que iniciativas nesse sentido já se fizeram presentes, mas caminham a passos lentos. Assim é que se encontra em tramitação, por exemplo, o Projeto de Lei 6.621/2016[1]. Não há, contudo, expectativa de definição no curto prazo de um marco legal no sentido genérico para as agências.

Entretanto, a história própria dessas entidades no Brasil e tudo o que se construiu a título doutrinário sobre elas desde a década de 1990 aponta para uma pretensão de dotar de tecnicismo e eficiência o processo de tomada de decisão da intervenção estatal na economia. A razão de sua existência sempre aparentou ser a profissionalização da atuação indireta do Estado na economia, que passaria a se pautar por critérios objetivos e especializados, aliado que foram suas criações ao momento de abertura da economia e de estabilização monetária.

É nesse contexto que se encontra inserida a capacidade normativa desses entes, submetida aos limites legais, mas que transfere para o agente público especializado, integrado por diretores detentores de mandato, com conhecimento profissional específico, o detalhamento das medidas a serem implementadas. E é nesse ponto que a ADI 4.874/DF pode ser identificada como um grave momento de definição constitucional do papel das agências reguladoras. Diante da falta de um marco legal geral, e tendo por base o fato de que a ADI importa, justamente, no enfrentamento da legitimidade da competência normativa da Anvisa, ao publicar a RDC 14/2012, é que se pode afirmar que a ADI 4.874 tem o poder de redefinir o escopo de atuação das agências reguladoras.

Caso o STF não reconheça o caráter flagrante e eminentemente técnico e legitimamente dentro dos limites legais que representa a RDC 14/2012, ou se a corte negar à Anvisa a atribuição de produzir atos normativos dessa espécie, estar-se-á, na prática, definindo e ceifando a capacidade de atuação técnica e específica de todas as agências. Retornar-se-á, assim, a uma compreensão de Estado interventor anterior à própria Constituição de 1988, com reflexos negativos sobre a atratividade do mercado brasileiro aos investidores.

O segundo ponto em discussão na ADI é ainda mais sensível que o anterior. Sabe-se que a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.874 vem sendo referida como a “ADI dos aditivos”. A razão é que, por meio da RDC 14/2012, a Anvisa passou a impedir a utilização de aditivos flavorizantes e aromatizantes em diferentes produtos fumígenos.

A medida teve algumas razões de ser muito bem definidas. Como já tivemos oportunidade de mencionar anteriormente neste mesmo espaço, “sabe-se que os aditivos são substâncias utilizadas para tornar o produto — o mais conhecido é o cigarro — aprazível e, consequentemente, mais agradável ao paladar, especialmente de crianças e adolescentes”. Nesse sentido, a RDC 14/2012 tem o propósito deliberado de desestimular o consumo infantil de produtos derivados do tabaco. Relembre-se que, segundo pesquisa do IBGE, em parceria com o Instituto Nacional do Câncer, 75% dos fumantes brasileiros iniciam-se no tabagismo até os 18 anos.

Mas não é só. A resolução em questão teve o propósito igualmente deliberado de pôr em prática, no país, obrigações internacionais já assumidas pelo Brasil, há tempos, ao assinar a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, devidamente internalizada no ordenamento jurídico, por meio do Decreto 5.658/2006. Entre as medidas de desestímulo ao consumo previstas na norma internacional, destaca-se o compromisso assumido pelos quase 200 países signatários de medidas visando à proibição dessas espécies de aditivos, todos alinhados no reconhecimento da atratividade nefasta que essas substâncias ocasionam para o consumo infantil de cigarros.

A medida adotada pela Anvisa é clara, pautada por propósitos transparentes, legais e legítimos e pode impactar diretamente na qualidade de vida (e de saúde) das crianças e jovens brasileiros. Mais uma vez, debruça-se o Supremo Tribunal Federal sobre tema delicado e com poder de definir o futuro do Brasil e das pessoas que aqui vivem.


[1] Entre as medidas previstas no referido PL, encontram-se a intenção de conferir maior autonomia às agências quanto à questão, a instituição de um planejamento estratégico, obrigatoriedade de apresentação de análises de impacto regulatórios, o estabelecimento de mandatos e requisitos para indicações, entre outras.

 é advogada, professora decana de Direito Econômico da UFMG e presidente do Brasilcon – Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor.




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