Tributo sobre o pecado ou política tributária de saúde pública?

04.02.20


Valor Econômico

No fim de janeiro, o Ministro da Economia declarou sua intenção de criar um “imposto do pecado”, cuja incidência se daria sobre cigarros, bebidas alcoólicas e produtos com adição de açúcar. Muita polêmica se seguiu à declaração e o presidente Jair Bolsonaro negou qualquer possibilidade nesse sentido. Há, porém, vários pontos que precisam ser esclarecidos sobre o tema.

 

Em primeiro lugar, sobre a denominação dada por Guedes. Trata-se da tradução literal de expressão já consolidada na literatura internacional e frequentemente utilizada para criticar incidências tributárias específicas sobre esses bens – as sin taxes. A versão da expressão para o português é infeliz em razão do contexto político na qual se insere: poucas semanas antes, a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, defendeu a abstinência sexual como modo de prevenção de gestações na adolescência. Tributação do “pecado” e estímulo estatal à abstinência sexual parecem agendas da Inquisição medieval, e não do século XXI.

Diferente, porém, da abstinência sexual para prevenção de gestação precoce, a tributação de produtos notoriamente nocivos à saúde tem se mostrado medida eficaz seja para a redução do consumo de tais bens, seja para a redução dos gastos públicos em saúde. A alta tributação do cigarro, aliada com a limitação de publicidade, é exemplo claro nesse sentido. Neste texto, irei me concentrar na tributação das bebidas adoçadas artificialmente.

 

Como já escrevi em mais de uma ocasião nesta coluna, o México, que está entre os países com maior nível de obesidade no mundo, e com alto consumo de refrigerantes por crianças e jovens, foi o primeiro a criar um tributo específico sobre tais bebidas. O resultado já pode ser visto em poucos anos após a implementação.

 

Estudos publicados em 2017 apontam para a relação entre tributação e redução do consumo: em 2014, ano de introdução do imposto, a compra de água cresceu 16,2%, em comparação com os anos de 2008 a 2012, e o consumo de bebidas açucaradas caiu 6,3%. A maior redução ocorreu em residências de baixa ou média renda, mais sensíveis que são a quaisquer variações de preço nos produtos que consomem.

 

Reino Unido, Portugal, Hungria, Chile e outros países figuram na lista daqueles que adotaram medidas semelhantes. Em razão da comprovada eficácia da tributação, a Organização Mundial da Saúde, além de recomendar a criação de tributos desse tipo, sugere que a alíquota situe-se no patamar de 20%.

 

No Brasil, contudo, não apenas não possuímos um tributo específico para bebidas açucaradas, como há incentivos fiscais direcionados a alimentos nocivos à saúde pública. A tributação do IPI sobre os concentrados para a fabricação de refrigerantes ilustra bem esse ponto. Como é sabido, no governo Temer, em razão da crise dos caminhoneiros, houve redução da alíquota do IPI incidente sobre tal produto – saiu-se do patamar de 20% para 4%. O efeito prático, como já tratado nesta coluna, foi o aumento da tributação, a despeito da redução nominal da alíquota – sendo o IPI imposto não cumulativo, reduziu-se, também, o montante passível de tributação.

 

Em razão da reação do setor, poucos meses depois a medida foi flexibilizada para que a redução para 4% fosse progressiva: entre janeiro e junho de 2019 a alíquota seria de 12% e entre julho e dezembro do mesmo ano, 8%. Em janeiro de 2020, voltaria ao patamar de 4%. antes mesmo de terminar o período no qual a alíquota ficaria em 8%, Bolsonaro a aumentou novamente, dessa vez para 10%, no período de outubro a dezembro de 2019.

 

O caso não é simples e será analisado em breve pelo Supremo Tribunal Federal. Como muitas das fabricantes do concentrado de refrigerantes estão situadas na Zona Franca de Manaus, o governador do Estado do Amazonas ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade contra o decreto que reduziu as alíquotas, em razão de suposta ofensa à região incentivada. Esta coluna também já demonstrou a impertinência desse e outros argumentos.

 

Como se vê, a criação de um tributo que onerasse especificamente as bebidas adoçadas artificialmente, cigarros e bebidas alcoolicas não se aproxima, em nada, com a tributação do pecado: apenas impõe ônus tributário maior ao setor cuja atividade produz danos comprovados à saúde pública, ao mesmo passo que incentiva consumidores a adquirirem alimento mais saudáveis.

 

Trata-se de medida conjunta de política tributária e de saúde pública, consolidada em diversos países, que se mostrou eficaz na redução do consumo de tais bens. Não se trata, como podem argumentar, de medida paternalista do Estado, mas sim de providência adequada para conter gastos em saúde, pela redução de doenças relacionadas doenças relacionadas com o consumo excessivo de bebidas ultraprocessadas.

https://valor.globo.com/legislacao/fio-da-meada/post/2020/02/tributo-sobre-o-pecado-ou-politica-tributaria-de-saude-publica.ghtml




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