Ajuda humanitária aos Yanomami e social washing

Yanomami

A crise humanitária do povo Yanomami, em Rondônia, provocada pela invasão das terras indígenas por garimpeiros, tem sido destaque nas redes sociais e manchetes dos principais jornais e revistas no Brasil e no mundo. As imagens de crianças e idosos extremamente desnutridos e doentes são motivos de tristeza, indignação e comoção, e o governo federal tem atuado para enfrentar o problema, mobilizando os ministérios competentes. Paralelamente, pessoas e organizações da sociedade civil também têm empreendido doações de dinheiro ou alimentos, por exemplo. Ações de solidariedade e colaboração são positivas quando nos referimos à calamidades públicas, entretanto, chamamos atenção que quando feitas por indústrias de produtos que fazem mal à saúde e ao meio ambiente, como é o caso das indústrias de produtos ultraprocessados, bebidas alcoólicas e tabaco, estas práticas podem ter outra conotação: o social washing. De longe, parece responsabilidade social, mas olhando atentamente, é publicidade .

O “Dossiê Big Food: como a indústria interfere em políticas de alimentação” traz uma boa definição do fenômeno. “Chamamos de ‘social washing’ ações de empresas relativas a temas sociais que estão em alta no debate público com o objetivo de passar uma boa imagem para o público consumidor, gastando mais recursos para divulgar seus esforços em direção a uma causa específica do que minimizando seu impacto negativo na sociedade, no meio ambiente e na saúde humana.” Vale lembrar que práticas como essa aconteceram com frequência durante a pandemia de Covid-19, estão se repetindo agora com os Yanomami, e vão continuar acontecendo se os governos não criarem mecanismos para impedir essa publicidade disfarçada de boa ação.

Social washing e Yanomami

No caso da crise humanitária que acomete os Yanomami, pelo menos duas ações de social washing foram identificadas pela equipe de Monitoramento da Indústria da ACT Promoção da Saúde. Foi notícia no principal telejornal brasileiro que uma startup – financiada por uma grande indústria de bebidas alcoólicas e ultraprocessadas – estava levando para o povo Yanomami uma tecnologia barata para filtragem de água potável, em mochilas. A reportagem mostra voluntários nos territórios indígenas, utilizando camisetas com a logomarca da empresa, e CEO’s repercutiram a notícia em suas redes sociais. É de conhecimento que povos indígenas e outras famílias em situação de vulnerabilidade sofrem com o aumento expressivo de casos de alcoolismo, e frequentemente são consumidores alvo para os produtos nocivos dessa indústria. Portanto, restringir a presença de logomarcas de produtos nocivos e suas formas de divulgação é uma ação necessária na proteção dos indígenas enquanto grupo de risco.

Outro exemplo de social washing foi a parceria envolvendo uma grande plataforma de entrega de alimentos e uma organização não-governamental, para fazer uma doação aos indígenas afetados pela crise. A preocupação nesse caso se dá em razão de que alimentos ultraprocessados são ostensivamente propagandeadas nesta plataforma. Produtos ultraprocessados, além de não serem condizentes com os hábitos alimentares desse povo, são um fator de risco significativo para o desenvolvimento de uma série de doenças.  

A Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável divulgou uma nota pública, convocando que o governo brasileiro atuasse de modo que nenhum produto ultraprocessado fosse entregue aos povos indígenas. “Ao envidar esforços para reverter a desassistência à saúde e à segurança alimentar e nutricional, o Governo Federal não pode permitir que os Yanomami sejam ainda mais expostos a risco nutricional e de saúde com o oferecimento de produtos nocivos à saúde”, afirma trecho da nota.

Como os governos podem agir?

Os governos podem sim receber doações mas precisam proteger a população contra o social washing, adotando protocolos contra conflitos de interesses e estabelecendo regras claras. Um exemplo positivo aconteceu logo no início deste mês, quando a Funai e o Ministério da Saúde publicaram uma nota técnica com especificações de alimentos prioritários para serem distribuídos na terra indígena Yanomami, de forma que as doações estejam de acordo com o hábito e a cultura alimentar desse povo. Nessa lista, não há qualquer produto ultraprocessado. 

Para que não haja o escalonamento de práticas abusivas de publicidade e de marketing, convocamos as autoridades competentes para que construam instrumentos e protocolos adequados para mitigação do conflito de interesses em ações solidárias do setor privado. Para isso, é necessário minimizar as oportunidades de auto promoção e publicidade dessas empresas no momento da execução das doações. Algumas condutas que podem ser adotadas incluem, por exemplo, que as autoridades competentes restrinjam doações que identifiquem os doadores e suas logomarcas. Ou a proibição do uso de imagens das ações de solidariedade por parte dos doadores, e orientações para que os ministérios envolvidos não divulguem itens e empresas doadoras, e especialmente, que não haja qualquer menção aos doadores em sites oficiais dos órgãos relacionados. 

Ademais, chamamos a atenção que as doações de alimentos embalados gera uma série de poluentes que dificilmente acabam tendo a destinação correta e o devido tratamento nas áreas mais isoladas como às terras indígenas. Assim, assegurar que os doadores se responsabilizem pela coleta e destinação adequada de lixo e das embalagens desses produtos, quando for o caso, é uma medida coerente com a preservação do meio ambiente e consequentemente com a saúde desses povos

Se as indústrias tiverem compromisso real com o desenvolvimento social e humano das pessoas afetadas por calamidades, certamente não vão se opor à adequação das condutas  propostas.

Priscila Diniz, Rosa Maria Mattos e Vitória Moraes

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