Biscoito, batata frita e salgadinho: como os alimentos processados viciam como o cigarro

19.06.22


O Globo

Há cinco anos, um grupo de cientistas que pesquisa sobre nutrição estudou o que os americanos comem e chegou a uma conclusão surpreendente: mais da metade de todas as calorias que o americano médio consome vem de alimentos ultraprocessados, que eles definiram como “formulações industriais” que combinam grandes quantidades de açúcar, sal, óleos, gorduras e outros aditivos.

Alimentos altamente processados continuam a dominar a dieta americana, apesar de estarem ligados à obesidade, doenças cardíacas, diabetes tipo 2 e outros problemas de saúde. Eles são baratos e convenientes, e projetados para serem saborosos. São comercializados em altas quantidades pela indústria alimentícia. Mas um número crescente de cientistas diz que outra razão pela qual esses alimentos são tão consumidos é que, para muitas pessoas, eles não são apenas tentadores, mas viciantes, um conceito que gerou controvérsia entre os pesquisadores.

Recentemente, o American Journal of Clinical Nutrition explorou a ciência por trás do vício em alimentos e se os denominados ultraprocessados podem estar contribuindo para excessos e consequentemente obesidade. Contou com um debate entre dois dos maiores especialistas no assunto, Ashley Gearhardt, professora associada do departamento de psicologia da Universidade de Michigan, e o médico Johannes Hebebrand, chefe do departamento de psiquiatria infantil e adolescente, psicossomática e psicoterapia da Universidade de Duisburg-Essen na Alemanha.

A psicóloga de ciência clínica ajudou a desenvolver a pesquisa chamada de “Yale Food Addiction Scale” (Escala de Dependência Alimentar), que é usada para determinar se uma pessoa mostra sinais de comportamento viciante em relação à comida. Em um estudo envolvendo mais de 500 pessoas, ela e seus colegas descobriram que certos alimentos eram especialmente propensos a provocar comportamentos alimentares “viciantes”, como desejos intensos, perda de controle e incapacidade de reduzir esse consumo apesar de sofrer consequências prejudiciais e um forte desejo de parar de comê-los.

No topo da lista estavam pizza, chocolate, batata frita, biscoitos, sorvete e cheeseburguer. Gearhardt descobriu em sua pesquisa que esses alimentos altamente processados têm muito em comum com substâncias que causam dependência. Assim como os cigarros e cocaína, seus ingredientes são derivados de plantas e alimentos naturais que são despojados de componentes que retardam sua absorção, como fibras, água e proteínas. Em seguida, seus ingredientes mais prazerosos são refinados e processados em produtos que são rapidamente absorvidos pela corrente sanguínea, aumentando sua capacidade de iluminar regiões do cérebro que regulam recompensa, emoção e motivação.

A psicologa diz que sal, espessantes, sabores artificiais e outros aditivos em alimentos altamente processados fortalecem sua atração, melhorando propriedades como textura e sensação na boca, semelhante à forma como os cigarros contêm uma série de aditivos projetados para aumentar seu potencial viciante. O mentol ajuda a mascarar o sabor amargo da nicotina, por exemplo, enquanto outro ingrediente usado em alguns cigarros, o cacau, dilata as vias aéreas e aumenta a absorção da nicotina.

Um denominador comum entre os alimentos ultraprocessados mais irresistíveis é que eles contêm grandes quantidades de gordura e carboidratos refinados, uma combinação potente que raramente é vista em alimentos naturais que os humanos comem, como frutas, legumes, carne, nozes, mel, feijão e sementes, explicou a psicóloga Gearhardt. Muitos alimentos encontrados na natureza são ricos em gordura ou carboidratos, mas normalmente não são ricos em ambos.

— As pessoas não experimentam uma resposta comportamental viciante a alimentos naturais que são bons para nossa saúde, como morangos — disse a diretora do Laboratório de Ciência e Tratamento de Alimentos e Dependências da Universidade de Michigan. — É esse subconjunto de alimentos altamente processados que são projetados de uma maneira tão semelhante à forma como criamos outras substâncias viciantes. Esses são os alimentos que podem desencadear uma perda de controle e comportamentos compulsivos e problemáticos que se assemelham ao que vemos com álcool e cigarros — explicou Gearhardt sobre como as substâncias presentes nesses alimentos são semelhantes as de produtos viciantes.

Em um estudo, ela descobriu que quando as pessoas cortam alimentos altamente processados, elas experimentam sintomas comparáveis à abstinência observada em usuários de drogas, como irritabilidade, fadiga, sentimentos de tristeza e forte desejo. Outros pesquisadores descobriram em estudos de imagens cerebrais que as pessoas que consomem frequentemente comidas não saudáveis como fast food, podem desenvolver uma tolerância a eles ao longo do tempo, levando-os a exigir quantidades cada vez maiores para obter o mesmo prazer.

Em sua prática clínica, a psicóloga e professora encontrou pacientes - alguns obesos e outros não - que lutam em vão para controlar a ingestão de alimentos altamente processados. Alguns tentam comê-los com moderação, apenas para descobrir que perdem o controle e comem a ponto de se sentirem doentes e perturbados. Muitos de seus pacientes acham que não podem parar com esses alimentos, apesar de lutarem com diabetes descontrolado, ganho excessivo de peso e outros problemas de saúde.

— O impressionante é que meus clientes estão quase sempre cientes das consequências negativas de seu consumo de alimentos altamente processados, e normalmente tentaram dezenas de estratégias, como dietas radicais e limpezas, para tentar controlar seu relacionamento com esses alimentos — ela disse. — Embora essas tentativas possam funcionar por um curto período de tempo, quase sempre acabam recaindo — lamenta a psicóloga.

Já o médico Hebebrand contesta a ideia de que qualquer comida vicia. Enquanto batatas fritas e pizza podem parecer irresistíveis para alguns, ele argumenta que eles não causam um estado mental alterado, uma marca registrada de substâncias viciantes. Ele diz que fumar um cigarro, beber um copo de vinho ou tomar uma dose de heroína, por exemplo, causa uma sensação imediata no cérebro que os alimentos não causam.

— Você pode tomar qualquer droga que vicia, e é sempre a mesma história de que quase todo mundo terá um estado mental alterado depois de ingeri-la. Isso indica que a substância está afetando seu sistema nervoso central. Mas todos nós estamos ingerindo alimentos altamente processados, e nenhum de nós está experimentando esse estado mental alterado porque não há um impacto direto de uma substância no cérebro — disse Hebebrand.

Nos transtornos por uso de substâncias, as pessoas se tornam dependentes de uma substância química específica que atua no cérebro, como a nicotina do cigarro ou o etanol do vinho e da bebida. Eles inicialmente procuram esse produto químico para obter uma alta e, em seguida, tornam-se dependentes dele para aliviar emoções deprimidas e negativas. Mas em alimentos altamente processados, não há um composto que possa ser apontado como viciante, explica o psiquiatra. De fato, evidências sugerem que pessoas obesas que comem demais tendem a consumir uma grande variedade de alimentos com diferentes texturas, sabores e composições. Hebebrand argumentou que comer demais é impulsionado em parte pela indústria de alimentos que comercializa mais de 20.000 novos produtos todos os anos, dando às pessoas acesso a uma variedade aparentemente infinita de alimentos e bebidas. Ele diz ainda que é a diversidade de alimentos que é tão atraente e causadora do problema, não uma única substância nesses alimentos.

Aqueles que argumentam contra a dependência alimentar também apontam que a maioria das pessoas consome diariamente alimentos altamente processados ​​sem apresentar nenhum sinal de dependência. Mas a psicóloga Gearhardt observa que as substâncias viciantes não acontecem com todos que as consomem. Segundo a pesquisa , cerca de dois terços das pessoas que fumam cigarros se tornam viciadas, enquanto um terço não. Apenas cerca de 21% das pessoas que usam cocaína em suas vidas se tornam viciadas, enquanto apenas 23% das pessoas que bebem álcool desenvolvem dependência. Estudos sugerem que uma ampla gama de fatores determina se as pessoas se tornam viciadas, incluindo sua genética, histórico familiar, exposição a traumas e origens ambientais e socioeconômicas.

— A maioria das pessoas experimenta substâncias viciantes e não se torna viciada. Então, se esses alimentos são viciantes, não esperaríamos que 100% da sociedade fosse viciada neles — disse a pesquisadora.

Para as pessoas que lutam para limitar a ingestão de alimentos altamente processados, ela recomenda manter um controle do que você come para que você possa identificar os alimentos que têm mais atração – aqueles que causam desejos intensos e que você não consegue parar de comer uma vez que você começa. Mantenha esses alimentos fora de sua casa, enquanto abastece sua geladeira e despensa com alternativas mais saudáveis ​​​​que você gosta.

Mantenha o controle dos gatilhos que levam a desejos e excessos. Eles podem ligados a emoções como estresse, tédio e solidão. Ou pode ser os alimentos de fast food que você come três vezes por semana. Faça um plano para gerenciar esses gatilhos tomando um caminho diferente para casa, por exemplo, ou usando atividades não alimentares para aliviar o estresse e o tédio. E evite pular refeições, porque a fome pode desencadear desejos que levam a decisões lamentáveis, disse ela.

— Certificar-se de que você está regularmente alimentando seu corpo com alimentos nutritivos e minimamente processados ​​que você gosta pode ser importante para ajudá-lo a navegar em um ambiente alimentar muito desafiador— aconselhou Gearhardt.




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