Boletim de monitoramento - Setembro 2020

27.08.20


ACT Promoção da Saúde

Editorial

Economistas e analistas financeiros vêm apresentando diversos cenários para o futuro pós-pandemia e ouvimos, com frequência, palavras como recessão, depressão e estagnação. O fato é que a pandemia causada pelo coronavírus mexeu de tal forma com as economias globais que as empresas precisam pensar em como recuperar parte dos investimentos e voltar a crescer, sem afetar a boa imagem corporativa. 

Empresas dos setores de tabaco, alimentos ultraprocessados e bebidas alcoólicas, entre outras, vêm operando o marketing de sempre e tentando vender mais produtos, mas de forma disfarçada para conquistar o coração do consumidor como aquela que colaborou durante a epidemia e na recuperação econômica. Assim, como boas cidadãs, passam a ser reconhecidas por seu quinhão de sacrifício.

Uma coalizão que vem chamando a atenção nesse período é o Movimento Nós, formada por gigantes do setor de alimentação e bebidas, e que está bem decifrada no texto de Laura Cury. Com a parceria, as empresas  correm juntas atrás do prejuízo causado pela retração da economia promovendo ações que ajudem o comerciante a seguir as normas do chamado novo normal. O ato de se unirem para avançar em pautas comuns já é usado pela indústria do tabaco há tempos: cada companhia firma sua posição e conquista a maior fatia do mercado, mas se juntam quando é preciso bloquear alguma regulamentação que possa afetar suas vendas. A autora também aborda o relatório sobre as estratégias de fabricantes de bebidas alcóolicas na América Latina e o Caribe, para vender mais produtos, mesmo em tempos de pandemia, que acabou de ser lançado.

Sobre a indústria do fumo, Mariana Pinho e Maria Paula Riva tratam da estratégia dessas empresas de aumentarem seus lucros acima de tudo, se associando a estilos de vida socialmente bem vistos, a personagens e a celebridades. O fundamental, percebemos, é dar credibilidade e limpar a imagem de um negócio que mata metade de seus consumidores, se usado como mandam as instruções. 

Camila Maranha conversou com a professora do departamento de Nutrição Clínica e Social da Universidade Federal de Ouro Preto, Maria Cristina Passos, atualmente diretora administrativa da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan), a respeito de uma questão específica: o aleitamento materno. Em agosto, mês de conscientização sobre o assunto, foram identificadas várias ações de promoção de fórmulas e compostos lácteos, contrariando a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Mamadeiras, Bicos e Chupetas, sendo algumas com aval de sociedades médicas, o que causou indignação a organizações que lidam diretamente com a questão.

 

Entre os dias 7 e 13 de setembro a ACT participa da semana global de ação liderada pela NCD Alliance sobre o tema “Accountability”, que em português significa uma espécie de prestação de contas das empresas junto a governos, empresas e sociedade em relação ao seu papel e impacto na pandemia global das doenças crônicas não transmissíveis, agravada pela outra pandemia em curso, da Covid-19. Paula Johns trata desse tema, e ilustra a questão com uma série de exemplos da atuação de empresas globais que se colocam como solução para a crise atual.  Ela chama atenção para o risco de que a falta de senso crítico acabe distorcendo a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável , e que deixemos populações para trás.

 

As crises, no entanto, trazem oportunidades, tanto que o ideograma chinês para uma e outra é o mesmo. Nós, aqui no Brasil, estamos diante de uma grande possibilidade de começar a mitigar nossas desigualdades econômicas e sociais com a reforma tributária, em discussão no Congresso Nacional.  Nossa visão é a de que é preciso focar em uma tributação mais onerosa sobre produtos que provocam danos à saúde e sobrecarregam o SUS, como tabaco, bebidas adoçadas e alcoólicas, além de agrotóxicos. Assim, a tendência é que o preço desses produtos aumente, o que contribui para reduzir seu consumo e, consequentemente, menos pessoas adoecerem. É sobre isso a Nota Técnica que a ACT produziu, intitulada Por uma reforma tributária a favor da saúde, e que pedimos que você, leitor(a), a compartilhe com seus grupos e faça chegar nossa mensagem. 

 

Boa leitura

Anna Monteiro

Diretora de Comunicação

 


 

O encontro das pandemias

Paula Johns

Além da pandemia causada por um vírus altamente contagioso, temos outra pandemia, silenciosa, transmitida por agentes não contagiosos, e que não pode mais ter sua magnitude ignorada. É a das doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs). Juntas, correndo em paralelo e se retroalimentando, essas duas epidemias expõem as enormes falhas estruturais na governança global em saúde.

O papel da sociedade civil organizada é fundamental nessa reflexão e nesse debate amplo que precisamos travar com todos os atores sociais. Num mundo globalizado e cada vez mais interdependente e hiperconectado, os elos entre o global e o local e a interdependência das agendas de saúde, economia, desigualdade, iniquidade de raça e gênero e sustentabilidade precisam estar no centro da agenda. Necessitamos fortalecer o debate sobre valores. A saúde das pessoas e do planeta está intrinsecamente relacionada com os determinantes sociais e comerciais que criam os ambientes onde vivemos e convivemos.  

A campanha Basta! É tempo de agir, da NCD Alliance, coalizão internacional da qual a ACT Promoção da Saúde faz parte, é um chamado para que cada um de nós, inseridos em coletivos, instituições e grupos distintos, sejamos a voz das mudanças necessárias.  A diversidade de papéis e de lugares de fala nos dá a possibilidade de desempenhar papeis diferentes e complementares inspirados pelo objetivo de não deixar ninguém para trás.  

Somos todos(as) afetados(as) pelas doenças crônicas não trasmissíveis de alguma forma, seja por viver com uma das doenças dessa categoria, como as cardiovasculares e respiratórias, câncer ou diabetes, pelo risco de desenvolvê-las ou simplesmente por cuidar de alguém com uma delas. Nossa voz é importante nessa chamada coletiva para que os governos atuem de forma significativa e transformadora para reduzir sofrimento evitável, as mortes e as debilidades prematuras advindas das DCNTs.

As DCNTs são responsáveis por 72% das mortes no Brasil, e os investimentos em prevenção e cuidados não são compatíveis com a magnitude do problema, nem aqui no Brasil nem em nenhum país. Os recursos são finitos. E estamos falando de doenças evitáveis, causadas por fatores de risco relacionados a dinâmicas e estruturas de mercado composta por companhias que lucram trilhões e trilhões com a venda de produtos que causam e/ou agravam essas doenças. Portanto, falar de interferência da indústria é falar de accountability, de demandar que governos cumpram o seu mandato de priorizar a saúde e o interesse público, que não deixem interesses corporativos interferirem em políticas públicas, de adotar políticas públicas que criem ambientes favoráveis a escolhas e estilos de vida promotores da saúde e do bem estar. 

Uma das estratégias da semana de ação, liderada globalmente pela NCD Alliance, é dar visibilidade aos indivíduos afetados. A voz de cada um(a) de nós está inserida num contexto e, nesse sentido, não podemos deixar de abordar a escala do engajamento comercial e político na estratégia corporativa central de grandes corporações no envolvimento com a Covid-19.  

 

O aspecto mais visível é na área de publicidade e das promoções, onde a adaptação ao fechamento e paralisação de atividades devido à pandemia tem tido importantes implicações no aceleramento de tendências que já estavam em andamento, como o movimento de digitalização e de direcionamento para o fornecimento direto dos consumidores. A escala da oportunidade criada em alguns contextos é abismal. No Brasil, onde a AmBev explorou o nicho das lives e das mídias sociais durante a pandemia, é um caso exemplar. 

A plataforma de transmissão ao vivo foi transformada num calendário de concertos online com vários gêneros musicais e incluiu o portfólio mais amplo como Brahma Duplo Malte, Bohemia, Budweiser e Original. De acordo com informações da própria AmBev, o resultado quebrou todos os recordes possíveis, teve 24 vezes mais impressões e mais mídia espontânea do que durante a Copa do Mundo de 2018. Na primeira live com a Bohemia, foram 272 mil menções em mídias sociais, o que representa 8% do total de menções que tiveram de todas as marcas ao longo de 2019. 

No âmbito da Responsabilidade Social Empresarial, a relação entre as iniciativas das corporações e marketing é mais clara do que nunca, como mostramos na edição anterior. No mundo todo, cada vez mais temos casos parecidos de distribuição de ultraprocessados e outros produtos nocivos para trabalhadores da área de saúde e grupos em vulnerabilidade social. A estratégia de fazer propaganda e campanhas como exemplo de solidariedade na pandemia também se mostra similar em vários países, incluindo o Brasil, e chega a ser difícil criticar a boa vontade  em situações de crise. É possível observar, também, como esses padrões de RSE reúnem as necessidades de negócios das empresas com a promoção de uma boa imagem corporativa e ignoram completamente a relação dessas empresas com a pandemia das DCNTs,  que por sua vez afeta ainda mais a epidemia da Covid-19, num ciclo vicioso.

A filantropia das corporações também espelha as necessidades de suas controladoras por trabalhar a boa imagem corporativa de forma global, e um dos exemplos está  nas contribuições da Pepsico para bancos de alimentos globais e de outras empresas na área da alimentação. São vários exemplos na América Latina através do GlobalFoodBanking Network

A NCD Alliance coletou alguns exemplos globais de ações das indústrias de tabaco, álcool e alimentos ultraprocessados como reação a pandemia da Covid-19.

É chocante lermos sobre promoção de parcerias com governos, organizações internacionais e da sociedade civil. A Coca-Cola chegou a constar de documento do Ministério da Saúde paraguaio, com sua doação de equipamentos médicos. Algumas dessas parcerias são particularmente preocupantes, pois envolvem também organismos internacionais, caso da Coca-Cola e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento na Bolivia e no Uruguai. Várias organizações da sociedade civil não têm mecanismos estabelecidos para avaliar ou lidar com essas relações, como fica evidente nas doações da indústrias fabricantes de produtos que fazem mal para a saúde para a Cruz Vermelha ou para a ong Save the Children, uma das mais ativas na defesa dos direitos das crianças. 

Exemplos como esses, do Brasil e de vários lugares do mundo, e a dificuldade em debater suas consequências mais profundas são reflexos de uma incapacidade de pensar de forma mais sistêmica sobre a pandemia da Covid-19 e suas interfaces com às DCNTs, o chamado encontro de pandemias. E nesse sentido, temos o risco real de que o relacionamento despido de senso crítico com esses atores acabe distorcendo a agenda de objetivos do desenvolvimento sustentável, pressionando por falsas soluções e abordagens limitadas sobre as políticas para as DCNTs, que acabarão por exacerbar ambas pandemias, a da Covid-19 e das DCNTs.

 


 

No agosto dourado, vários motivos para comemorar, monitorar e denunciar

Camila Maranha

No último mês foi comemorado o Agosto Dourado, que promove a conscientização sobre o aleitamento materno. Nesse período tivemos o Dia Mundial da Amamentação, comemorado no primeiro dia do mês, e a Semana Mundial, até 7 de agosto. O tema foi Apoiar a amamentação para um planeta mais saudável, definido pela Aliança Mundial de Ações em prol do Aleitamento Materno (WABA) em uma referência à Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

 

Essa é uma agenda defendida por muitos coletivos e atores da sociedade civil, dentre os quais merece destaque a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan) que coordena esforços de proteção ao aleitamento materno. Sua entidade brasileira acumula décadas de experiência na promoção e proteção da amamentação, mas também no trabalho em rede fazendo monitoramento constante e denúncia das estratégias de marketing das empresas que produzem fórmulas infantis para lactentes e de seguimento para primeira infância, incluindo os compostos lácteos, junto aos órgãos responsáveis pela fiscalização da legislação. 

 

Embora estratégias corporativas de empresas do ramo de alimentação não sejam novas, como mostramos no Boletim de março, a impressão que se tem atualmente é que elas parecem estar se modificando, tanto aqui como em outros países. Conversamos sobre esse tema com Maria Cristina Passos, atual Diretora Administrativa da Ibfan no Brasil e Professora do Departamento de Nutrição Clínica e Social da Universidade Federal de Ouro Preto, para que ela pudesse explicar como isso tem se dado e o que a sociedade civil tem feito a respeito.

 

Na visão da nutricionista, nesse período de pandemia algumas estratégias de empresas que já aconteciam parecem estar se intensificando, como o desrespeito a normas vigentes. Entretanto, agora o foco é muito maior para a internet. Alguns exemplos são bem marcantes, como uma Live que contou com a atriz Fernanda Rodrigues, a cantora Negra Li, um médico nutrólogo e uma nutricionista, ambos especializados em nutrição infantil sobre o produto Ninho Forti+. Trata-se de um leite integral e um composto lácteo cujos rótulos muito similares têm confundido até mesmo profissionais de saúde ao realizarem a compra. Em reação a essa iniciativa, foi feita divulgação nas redes sociais de posts denunciando a similaridade nos rótulos dos compostos lácteos e leite em pó, na tentativa de alertar o consumidor.

 

 

 

 

Foi monitorado também o lançamento de uma nova fórmula infantil para lactentes Nan Supreme com a divulgação de uma live da cantora Maria Rita. A indignação provocada por essa manobra da indústria fez com que se organizasse um tuitaço pedindo para que a artista não participasse da atividade, tendo alcançado grande mobilização por parte de membros da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável e a saída da celebridade do evento. Outra Live que também entrou no radar da Ibfan foi uma com a atriz Gisele Itiê denominada “Maternidade Real na Pandemia”, com patrocínio da empresa Danone.

 

 

Aconteceu, ainda, o lançamento do Programa Jovens Pediatras (J. Pedia) da Nestlé, chancelado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), que visa envolver até 25 mil residentes em Pediatria em um curso de Nutrição Infantil totalmente online. Os residentes receberam pequenos brindes como pen drive (bonequinho pediatra Nestlé), caderno de anotações e caneta, além de outros benefícios financeiros como o pagamento da anuidade como membros da SPB, práticas proibidas pela Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Mamadeiras, Bicos e Chupetas (NBCAL)(1). Em resposta a essa iniciativa, foi enviada uma carta de repúdio à SBP, denunciando o claro conflito de interesses desse programa, endereçada a vários órgãos (Associação Médica Brasileira, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, diversas coordenações do Ministério da Saúde,  Comissão Nacional de Residência Médica, Unicef Brasil, Opas Brasil, Internacional Pediatric Association)". Vale destacar que grupos da Rede Ibfan de outros países, como Índia, Luxemburgo, Inglaterra, Costa Rica também enviaram cartas de repudio a diretoria da SBP.

 

 

 

 

Nesse período foram também identificados influenciadores digitais (celebridades/atrizes famosas ou mães comuns) promovendo compostos lácteos nas redes sociais, com alusão à melhora do sono dos bebês em decorrência do componente “camomila” adicionado ao composto lácteo Ninho Hora de Dormir, sendo o Instagram a principal plataforma utilizada.

 

 

Paralelamente a tudo isso, como forma de comemorar o Agosto Dourado e promover e proteger a amamentação, foram desenvolvidos eventos e debates virtuais por diversas organizações da sociedade civil. Por exemplo, em uma iniciativa conjunta entre o Conselho Regional de Nutrição CRN-4 e Rede Ibfan, em cooperação com a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável e universidades federais do estado do Rio de Janeiro, foi exibido e debatido o Filme Tigers, que conta uma história baseada em fatos reais sobre as práticas corporativas abusivas e antiéticas usadas pela indústria para persuadir médicos a prescrever fórmulas infantis. O evento ficou disponível para acesso durante todo o mês de agosto.

 

 

O atual cenário em que estamos vivendo têm trazido, assim, algumas preocupações a mais. Para Cristina Passos, “nesse momento de isolamento social causado pela pandemia, em que estamos todos mais voltados para a internet estamos também mais susceptíveis à publicidade nos ambientes virtuais e mais sujeitos à influência desse tipo de marketing abusivo”. E a regulação desses espaços é ainda incipiente. Mas, além disso, a nutricionista lembra que “os consumidores vão aos supermercados com mais pressa e compram os produtos sem se deterem à leitura dos rótulos ou fazem suas compras com entrega no domicílio, com maior risco de enganos na obtenção dos produtos pela semelhança nos rótulos. Tivemos notícias recentes de nutricionistas que se surpreenderam com o consumo de composto lácteo, pensando se tratar de leite”. 

 

Para ela, a preocupação está nas escolhas não informadas. “São famílias adquirindo produtos ultraprocessados sem a clareza do que estão oferecendo para crianças na primeira infância, impactando negativamente nas taxas de aleitamento materno, nos índices de obesidade e saúde infantil”, completa.

 

Mais do que nunca, é preciso monitorar, denunciar e cobrar do poder público o cumprimento de seu papel na fiscalização da NBCAL e na execução de políticas públicas voltadas à proteção do aleitamento materno e das crianças brasileiras, conforme descrito no Marco Legal da Primeira Infância(2), para o bem estar de mulheres e das famílias brasileiras. E monitorar e denunciar práticas corporativas que violem o direito humano à alimentação adequada, incluindo o direito das nossas crianças.

1. Lei 11.265/2006 e Decreto 9.579/2018

2. Lei Federal Nº 13.257 de 2016.

 


Movimento nós: juntos pelo bem comum ou um emaranhado de empresas que querem lucrar cada vez mais?

Laura Cury

A pandemia da Covid-19 está levando a economia global à recessão e indústrias precisam se adaptar às novas e desafiadoras circunstâncias. Empresas de alimentos e bebidas, incluindo as alcoólicas, precisam resistir a essa tempestade, e embora as pessoas continuem a consumir álcool, a natureza desse consumo está mudando. Isso significa que as marcas precisam pensar além das táticas tradicionais no momento de reabertura das economias.

De acordo com especialistas em venda e marketing, existem três áreas-chaves de enfoque que empresas devem considerar simultaneamente para garantir o retorno aos negócios da forma mais tranquila possível: (1) responder à emergência imediata e proteger a empresa e consumidores; (2) redefinir e adaptar o negócio ao que provavelmente será um conjunto muito diferente de prioridades de funcionários, clientes e consumidores, levando em conta a conexão entre consumidores e suas comunidades; (3) renovar e dimensionar operações para dar suporte a um modelo de negócios resiliente e ajudar a impulsionar o retorno ao crescimento. 

Provavelmente levando esses critérios em consideração, foi formada uma parceria que, à primeira vista, pode parecer inusitada, mas que, após uma análise um pouco mais cautelosa, faz bastante sentido estratégico. Trata-se do Movimento Nós,  coalizão formada por oito grandes empresas do setor de alimentos e bebidas: Ambev, Aurora Alimentos, BRF, Coca-Cola Brasil, Grupo Heineken, Mondelez International, Nestlé e PepsiCo. A intenção alegada é apoiar o pequeno varejo na reabertura do comércio. Vale notar que, conforme aponta relatório sobre consumo de bebidas alcoólicas na América Latina e Caribe, em muitos países da região os pequenos varejistas respondem pela maioria das vendas. No Brasil, 55% das vendas do segmento de cerveja, por exemplo, são realizadas para bares e restaurantes, fechados devido à quarentena. Chegada a flexibilização, é hora das empresas atuarem e correrem atrás do prejuízo, literalmente. 

A estratégia de setores concorrentes se unirem, principalmente em momentos de crise, já é usada há tempos pela indústria do tabaco, precursora de tantas das estratégias de promoção de produtos nocivos que passaram a ser adotadas por empresas de outro setor, que também esbarram na questão da nocividade. Ao longo da história da indústria de tabaco, empresários tornaram-se mais articulados entre si para defender o setor fumageiro e influenciar diversos stakeholders, como a mídia, as associações comerciais e industriais, o parlamento, os órgãos técnicos dos poderes executivos, entre outros.

A união de várias empresas no Movimento Nós indica a possibilidade de formação de um monopólio, propício para dominar a oferta de produtos. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), entretanto, autorizou a colaboração afirmando que há justificativa econômica plausível para o acordo, que as partes adotaram protocolos de prevenção de riscos antitruste, que não há indícios de tentativa de realização de prática anticompetitiva e que existe preocupação por parte das empresas no reestabelecimento da competitividade e normalidade do setor. A aliança formada por empresas consideradas rivais revela o alcance e o intuito abrangente e envolvente delas, valores transmitidos na comunicação do movimento por meio do nome e simbologia da campanha, com a utilização do plural e do símbolo de infinito, remetendo à eterna recriação e repetição, algo típico, aliás, das indústrias de produtos nocivos à saúde. A coalizão constitui resposta clara à área chave  3, indicada por especialistas para lidar com a crise, como mencionado acima.

O investimento do coletivo Nós é de mais de R$ 370 milhões e promete beneficiar cerca de 300 mil pequenos comércios em todo o Brasil, entre bares, lanchonetes, padarias, mercearias, empórios e restaurantes, que, segundo essas empresas, empregam cerca de um milhão de pessoas e proporcionam impacto positivo em aproximadamente três milhões de vidas. Dentre as ações propostas pelo movimento, segundo press release enviado à imprensa e que consta do website das empresas envolvidas, estão a renegociação de prazos para o abastecimento dos pequenos comércios, bem como distribuição de kits de higiene e cartilhas para orientar os empreendedores a seguir as novas normas de segurança e saúde. Estas ações correspondem às respostas às áreas chave 1 e 2.

Segundo o VP de marketing da Ambev, Ricardo Dias, “neste momento de crise, a prioridade da empresa, além de manter seus funcionários seguros, é garantir que o ecossistema de bares e restaurantes volte a ser saudável o mais rápido possível.” Ainda de acordo com carta assinada pelos oito CEOs das empresas fundadoras do Movimento Nós, não se pode pensar apenas nos interesses individuais no momento pelo qual estamos passando com a Covid-19: É a hora de nos unirmos por um único objetivo: ajudar o país a atravessar esse período com o menor impacto possível. Os pequenos varejistas são nossos parceiros e não podemos medir esforços para ajudá-los a superar essa crise.”

Ações como essas são freqüentemente descritas como uma forma de ser parte da solução, podem ser lidas como responsabilidade social corporativa, como mostramos na edição de junho do Boletim de Monitoramento, estratégia que tem sido particularmente eficaz no contexto da resposta estratégica da indústria do álcool à pandemia, posicionando-se para ser vista como essencial, inclusive para ajudar a economia e os sistemas de saúde, como demonstrado no relatório sobre América Latina e Caribe. Nele, há afirmações como a da gerente de sustentabilidade do Grupo Heineken, Ornella Guzzo Vilardo, de que “as pessoas têm expectativas sobre quais serão as respostas dadas pelas empresas e qual será o papel que elas desempenharão nos momentos de crise. Assim, companhias com valores fortalecidos e consolidados  conseguem atuar com mais facilidade nesse períodos, fornecendo soluções numa velocidade maior”.

As ações promovidas por parte dessas empresas podem não ser, de fato, tão solidárias e responsáveis assim em um momento em que especialistas em saúde pública no Brasil continuam orientando que as pessoas permaneçam em casa sempre que possível e quando a ciência evidencia uma associação entre o consumo excessivo de álcool e efeitos adversos relacionados ao sistema imunológico, o que facilita a infecção por todo tipo de vírus, inclusive o coronavírus.  A união parece fazer mais parte da solução para as oito empresas do que para varejistas e consumidores.


 

O ganha-ganha da indústria do tabaco às custas da sociedade

 

Mariana Pinho e Maria Paula Riva

A pandemia causada pela Covid-19 escancarou diversos problemas existentes na sociedade e a eles se sobrepôs. Um deles foi o fato de que a economia global está calcada no consumo, a ponto de a necessidade de isolamento social ter levado o mundo a uma recessão que poderá perdurar por anos. Torna-se crucial, portanto, em meio a esse cenário, analisarmos as forças motrizes que motivaram chegarmos onde estamos, tanto em termos de saúde como de mercado. 

A forma mais comum de promover o consumo de um produto é através da propaganda. É a maneira mais tradicional, mais usual e que mais rapidamente se reverte em aumento de vendas, traduzindo-se em lucro para as empresas que o produzem, especialmente em tempos de publicidade direcionada e moldada ao perfil e práticas do usuário. 

Há, no entanto, outras formas de aumentar as vendas dos produtos, como sua associação a estilos de vida socialmente bem quistos, personagens e/ou celebridades, ou outros negócios que ofereçam credibilidade aos negócios, incluindo a prática de filantropia. Em se tratando de produtos que causam prejuízos à saúde ou ao meio ambiente, essas ações contribuem para distanciar a imagem da empresa dos danos gerados, ou reputation-washing e greenwashing.

No caso da indústria do tabaco, isso não foi diferente, mesmo com a proibição da propaganda nos meios de comunicação vigente desde 2000 no Brasil. Então, para se promover, a saída foi se reinventar sob o véu da responsabilidade social corporativa. 

Após a Organização Mundial da Saúde ter alertado em março para a associação entre o tabagismo e o aumento das chances de agravamento clínico e desfechos negativos em caso de infecção pelo vírus, as ações das principais empresas de tabaco, Philip Morris International e British American Tobacco, registraram uma queda vertiginosa nas principais bolsas de valores do mundo. Com isso, atividades de responsabilidade social tornaram-se imperiosas para essas empresas, para se redimirem perante o mercado e seus consumidores. No mês seguinte, a mídia noticiou a associação de empresas de tabaco a laboratórios  obstinados em produzir uma vacina contra o coronavírus, a exemplo da Reynolds American, filiada à British American Tobacco, proprietária de Kentucky BioProcessing, e a Medicago, que tem participação acionária da Philip Morris International. 

Há outros diversos registros de ações de responsabilidade corporativa, como foi o caso de doações feitas pelas empresas. A Philip Morris do Brasil afirma ter destinado R$ 3 milhões e a Souza Cruz - subsidiária da British American Tobacco, ao menos R$ 250 mil reais. E de fato, é muito delicado criticar qualquer apoio fornecido às autoridades sanitárias que tanto precisam de recursos financeiros, humanos e logísticos durante essa pandemia. Entretanto, essa lógica não deve se aplicar à indústria do tabaco, pois o preço que se paga por essa ajuda é muito alto.

O tabagismo custa aos cofres públicos mais de R$ 56 bilhões de reais anuais, considerando os custos com tratamento de doenças tabaco-relacionadas, incapacidade produtiva e morte prematura. Os impostos pagos pelo setor cobrem apenas 23% deste montante. É uma conta que nitidamente não fecha, e quem paga somos nós.

Esse rombo nas finanças públicas é ainda mais escandaloso se considerado  que parte dos recursos doados pela indústria do tabaco é a título de antecipação de impostos. Ou seja, a doação beneficia uma empresa que mata metade dos seus consumidores com abatimentos fiscais, e, mais uma vez, quem paga a conta desse déficit é a sociedade. 

Além disso, estudo publicado em maio deste ano, do Instituto Nacional de Câncer, aponta que para cada centavo da indústria do tabaco investido em marketing, o Brasil tem um gasto com tratamento de doenças tabaco-relacionadas 1,93 vezes superior.

Todas essas estratégias, aparentemente, têm dado resultado.

Na pandemia, a maioria dos fumantes continua fumando ou aumentou o número de cigarros ao dia, uma situação verificada em vários países. No Brasil, apenas 12% dos fumantes reduziram o número de cigarros, enquanto os demais permaneceram ou aumentaram o consumo com a pandemia, conforme pesquisa da Fiocruz e Unicamp.

No primeiro trimestre de 2020, a Philip Morris International registrou crescimento de 35% no lucro líquido quando comparado ao mesmo período do ano anterior. Apenas no Brasil, as vendas cresceram 10,3%. No trimestre seguinte, a empresa superou as expectativas dos analistas com um aumento considerável do lucro por ação (LPA): a previsão inicial era de US$ 1,10, e foi de US$ 1,29. 

Já está mais do que na hora da indústria do tabaco ser responsabilizada pelos prejuízos que causam à sociedade. É inaceitável que continuem a lucrar em detrimento do desenvolvimento social e econômico do país. A boa notícia é que diversas janelas de oportunidade estão abertas.

A primeira delas se dá com a reforma tributária, sobre a qual a ACT elaborou uma nota técnica. Nas propostas em trâmite no Congresso Nacional há a menção a um imposto seletivo para produtos que causam danos à saúde como álcool e tabaco. Tal medida é particularmente importante pois, como comprovado em diversas pesquisas, o aumento na tributação reduz o consumo, que por sua vez leva à queda no número de adoecimentos e termina por salvar vidas.

Uma segunda proposta que poderia ser explorada, nesse caso em nível estadual, é o aumento do ICMS e a vinculação dessa receita a ações de prevenção e controle do tabagismo, como ocorreu no estado do Maranhão.

Finalmente, não poderíamos deixar de mencionar uma necessária e imediata resolução ao processo judicial que, desde 1999, impede que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária receba os valores provenientes do registro e renovação de cigarros, que seguem sendo depositados em juízo pela Philip Morris e Souza Cruz. Apenas em 2020, a Agência deixou de arrecadar 30 milhões de reais pelo registro de 150 marcas de cigarro.

É, portanto, lamentável que essas empresas sigam lucrando em detrimento da morte, doenças e prejuízos econômicos da sociedade brasileira, ainda mais diante da necessidade de lidar com os custos da pandemia. Principalmente quando, para isso, se posicionam como boas cidadãs corporativas.

 
Equipe de monitoramento:
 
Anna Monteiro
Bruna Hassan
Camila Maranha
Denise Simões
Fabiana Fregona
Laura Cury
Maria Paula Riva
Mariana Pinho
Marília Albiero
Victoria Rabetim
 
Revisão e edição: Anna Monteiro
Arte: Ronieri Gomes

 




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