China muda hábitos de consumo e multiplica índices de obesidade

02.05.18


O Globo

PEQUIM — A disputa por mesas para o lanche da tarde no segundo andar da butique da Godiva, em um shopping de luxo em Pequim, é a prova de que os chineses vivem outros tempos. No país do chá, os frequentadores do estabelecimento abusam de cafés elaborados, com ou sem leite, que tomam com chocolates, sorvetes e doces — itens que até pouco tempo atrás estavam fora da dieta local e não cabiam do bolso do cidadão. Grifes internacionais, novos hábitos e gostos — com direito a anúncios de promoções inspirados na Páscoa, data que nunca foi comemorada pela maioria da população laica comunista — invadiram a China trazidos pela bonança dos últimos quase 30 anos.Nesse período, a economia do país cresceu mais de 30 vezes e tirou dezenas de milhões da linha da pobreza, movido pelo ritmo acelerado das chaminés da indústria. A riqueza e as transformações trazidas com ela, no entanto, têm um preço alto que a sociedade começa a pagar. Doenças crônicas, poluição do ar, água e solo e resistência a antibióticos estão entre os seus maiores desafios, na avaliação de especialistas ouvidos pelo GLOBO.

Com o consumo cada vez maior de açúcar, carnes e laticínios, um sinal de status da China onde milhões já passaram fome — um dos cumprimentos usados entre pessoas próximas guardado do passado recente é o “Você já comeu hoje?”, em vez de “Oi, tudo bem?”, empregado entre interlocutores de menos intimidade —, vieram as doenças ligadas a altos índices de glicemia e colesterol, uma enfermidade global. A China já é o país com o maior número de obesos do mundo, com 90 milhões de pessoas, praticamente a população do Vietnã. Estima-se que enfermidades relacionadas ao sobrepeso já sejam a quinta maior causa de mortes no Império do Meio. O número de crianças obesas quadruplicou nos últimos 35 anos.

— Embora a China detenha um quinto da população mundial, ela comporta um terço dos casos de diabetes do planeta. Isso é muito grave. Quase 15% das crianças são pré-diabéticas. A Sociedade de Diabetes da China acredita que só esta doença pode quebrar o sistema de saúde nacional — afirma Peggy Liu, presidente da organização ambiental JUCCCE, que atua na China para promover uma alimentação sustentável e a nutrição como disciplina obrigatória nas escolas.

A especialista, que é engenheira elétrica de formação e trabalhou em diversos programas de energia limpa, defende que o item “alimentos” é o maior causador de emissões de gases de efeito estufa no mundo, principalmente em função de carnes, agricultura industrializada e desperdício, um grande problema na China atual. O gosto por carne e leite à mesa fez da China o maior consumidor desses produtos no mundo. Os chineses agora consomem duas vezes mais carne do que os americanos. Até pouco tempo atrás, usavam carnes como tempero e não prato principal. E isso trouxe consequências que vão além da dieta propriamente dita. Para atender a uma demanda crescente, os produtores têm dado aos seus rebanhos cada vez mais antibióticos, o que acaba por criar a resistência a bactérias nos seres humanos, algo grave para um país do tamanho da China e para o resto do mundo.

— Houve uma mudança muito rápida na dieta dos chineses nestes 35 anos, com a chegada das lanchonetes “fast food”, alimentos com muitas calorias e o consumo de carnes e laticínios. O estilo de vida das pessoas está mudando — explica Joan Kaufman, diretora dos programas acadêmicos na Schwarzman Scholars da Universidade Tsinghua, especialista em política de saúde.

Outro problema, segundo ela, é a falta de prevenção contra as doenças crônicas. Os hospitais no país não teriam o hábito de pedir exames de imagem e, por isso, não identificariam a tempo enfermidades que poderiam ser tratadas de maneira simples. Com a população ficando cada vez mais velha, os casos graves passam a ser também mais numerosos, o que deve onerar ainda mais o sistema de saúde do país.

Nas últimas três décadas, a população urbana disparou, chegando aos atuais 57%, e devendo bater os 70% até 2050, segundo a especialista, pressionando as grandes cidades da China. A poluição do última mês na capital, que chegou ao alerta azul (o primeiro da escala de quatro cores, que termina em roxo), confirma que, apesar dos esforços que vêm sendo feitos pelo governo, a expansão da economia continua afetando o ar que os chineses respiram. Nos últimos dois meses muitas fábricas foram obrigadas a cortar 20% da produção para reduzir as emissões. Foi assim que o país conseguiu atingir a meta para o inverno: os índices caíram 50% em comparação com o ano anterior. Mas a contaminação continua e causa doenças respiratórias, o que aumenta a pressão sobre os hospitais. Não há estatísticas precisas do seu efeito na saúde, mas, segundo Joan, o tema foi parar entre as prioridades do Partido Comunista.

 

'PROBLEMA DE PAÍS RICO'

O crescimento econômico e o aumento da renda nos últimos anos criaram um problema de país rico para a China contemporânea. As pessoas querem mais: melhores salários, empregos, qualidade de vida e consumo de bens duráveis, ou não. Querem ter seu carro, apartamento e celular de última geração. Por isso, já não querem saber de filhos. A nova tendência veio tão depressa que atropelou a estratégia nacional: o fim da política do filho único, que durou quase 40 anos, e o início da política de dois filhos, que veio em 2016. Para Joan, essa foi uma medida “pouco ousada, que chegou tarde demais”. A perspectiva de menos adultos no mercado de trabalho num futuro próximo significa que o país deve crescer menos e terá uma fonte menor de recursos para sustentar os mais velhos.

— Isso poderia ter sido feito há 20 anos. É uma trágica ironia, mas agora fala-se em estimular as famílias a terem mais filhos. Há pouco que pode ser feito. Reduzir os preços das moradias cada vez mais caras nos centros urbanos ou o preço da educação? Facilitar as regras de trabalho para mulheres com crianças?

A China da nova era, que conseguiu melhorar suas taxas de expectativa de vida e outros indicadores sociais importantes, investe bilhões de dólares em novas tecnologias para continuar crescendo. No entanto, ainda terá de lidar com as mazelas do país em desenvolvimento que ainda é. Para Joan, os riscos de doenças infecciosas, como a gripe aviária, a segurança alimentar, que causou grandes escândalos de contaminação no passado recente, a saúde dos adolescentes e a contaminação por doenças sexualmente transmissíveis como a Aids são questões que precisam de atenção. Ela reconhece que o governo chinês tem trabalhado para mudar a legislação e melhorar o sistema de saúde, mas afirma que ainda há muito a ser feito.




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