Cigarro eletrônico: entenda por que, apesar dos riscos, EUA aprovaram uso do dispositivo

05.12.21


O Globo

 

Homem usa cigarro eletrônico Foto: Jefferson Coppola / Jefferson Coppola
Homem usa cigarro eletrônico Foto: Jefferson Coppola / Jefferson Coppola

Quando apareceram pela primeira vez nos Estados Unidos em meados da década de 2000, os “dispositivos eletrônicos de nicotina” — cigarros eletrônicos, "vapes" com líquidos eletrônicos e outros produtos que continham a substância encontrada no tabaco — estavam sujeitos a pouca fiscalização do governo federal. Suas fabricantes estavam, portanto, liberadas para incorporar inúmeros outros ingredientes e sabores.

Assim como os cigarros normais, tais dispositivos se mostraram extremamente atraentes para os jovens; em 2018, a mais alta autoridade sanitária americana declarou o hábito do "vaping" entre a juventude como uma “epidemia” e observou que um em cada cinco estudantes do ensino médio e um em cada 20 alunos do ensino fundamental usavam cigarros eletrônicos.

A nicotina pode prejudicar o cérebro em desenvolvimento e os cigarros eletrônicos contêm toxinas potencialmente prejudiciais, como metais pesados. Além disso, os efeitos a longo prazo da vaporização — o aquecimento da nicotina para criar um aerossol inalado — são desconhecidos.

Redução de danos

Apesar dessas preocupações, as autoridades de saúde pública americanas esperam que,diante de mais opções no mercado, as pessoas já viciadas em nicotina optem pelo cigarro eletrônico em vez do tradicional — um produto de consumo mortal tão bem sucedido em atrair e fidelizar usuários que já matou mais de 24 milhões de americanos nas últimas seis décadas.

Como os cigarros eletrônicos geralmente contêm menos produtos químicos tóxicos do que a fumaça do tabaco, acredita-se que eles sejam menos prejudiciais do que os cigarros comuns. Se um número considerável dos muitos adultos que fumam nos EUA optar pelos eletrônicos, acredita-se que um número significativamente menor de pessoas continuaria a sofrer de câncer e de doenças cardiovasculares e respiratórias.

Em 2016, em um esforço para reduzir os danos potenciais dos cigarros eletrônicos, a Food and Drug Administration (FDA, agência regulatória americana) começou a rotulá-los como “novos produtos de tabaco”. Tornou-se ilegal vender cigarros eletrônicos para menores de 18 anos (limite que subiu para 21 anos em 2019), e a agência foi autorizada a exigir rótulos de advertência.

A FDA também ganhou poder para manter os produtos fora do mercado, a menos que pudesse ser demonstrado que seus benefícios para a saúde pública superavam seus riscos. Isso foi resultado de uma lei aprovada em 2009, aplicada a novos produtos de tabaco em geral — os próprios cigarros e outros produtos de tabaco no mercado anteriores a 15 de fevereiro de 2007 não precisam atender ao mesmo padrão.

Proteção da saúde pública

Até o mês passado, a agência negou quase um milhão de autorizações. Mas um vaporizador e dois líquidos com sabor de tabaco foram autorizados, após a FDA declarar que os dados apresentados pela fabricante mostraram que eles eram de fato menos tóxicos do que os cigarros e poderiam, nas palavras do comunicado emitido pela agência, "beneficiar os fumantes adultos viciados que optam por esses produtos". Isso “superaria o risco para os jovens” e levaria a uma “proteção geral da saúde pública”.

Pesquisas inconclusivas

A decisão foi polêmica. Em parte, isso ocorre porque a pesquisa para saber se os produtos eletrônicos podem ajudar fumantes adultos a evitar o cigarro é inconclusiva. Por exemplo, em outubro, no mesmo mês da liberação da FDA, a publicação especializada JAMA Network Open publicou um estudo que "não encontrou evidências de que a mudança para cigarros eletrônicos tenha evitado uma recaída no tabagismo", disse o autor principal, John P. Pierce, professor emérito da Escola de Saúde Pública e Ciência da Longevidade Humana Herbert Wertheim na Universidade da Califórnia, em San Diego. Ele e seus colegas analisaram dados de um estudo longitudinal do uso do tabaco nos EUA iniciado em 2013 pela própria FDA. Com base nas respostas até 2017, os pesquisadores identificaram 13.604 participantes que eram fumantes. Quando esses mesmos voluntários foram entrevistados um ano depois, 9,4% deles relataram que haviam largado o vício.

O mesmo estudo não tentou especificar quais métodos as pessoas usaram para parar; perguntou apenas quais produtos de tabaco elas consumiram após parar de fumar, se fosse o caso. Após 12 meses, verificou-se se: elas haviam parado completamente de fumar; se tiveram uma recaída e pararam novamente; ou se voltaram a fumar.

Depois de controlar algumas variantes, como o nível de dependência de nicotina, o grupo do JAMA concluiu que aquelas que estavam usando qualquer produto alternativo à base de tabaco depois de parar de fumar, incluindo cigarros eletrônicos (mas também charutos, narguilês e similares), tinham 8,5% mais chances de recaídas do que aquelas que não o fizeram. A proporção de usuários diários de cigarro eletrônico e abstêmios de tabaco que voltaram a fumar era quase a mesma: pouco mais de um terço. Em outras palavras, os cigarros eletrônicos não pareceram ter mais sucesso em prevenir a retomada do vício.

Mas há outros pesquisadores que acreditam que, em conjunto, as evidências existentes sugerem que os cigarros eletrônicos podem beneficiar a saúde pública. Em setembro, antes de a FDA ter aprovado qualquer produto de cigarro eletrônico, um grupo de pesquisadores expôs essa evidência no American Journal of Public Health. Os estudos que eles citam incluem um ensaio clínico randomizado conduzido na Grã-Bretanha e publicado no New England Journal of Medicine em 2019 que descobriu que os participantes que queriam largar o fumo e mudaram para cigarros eletrônicos tiveram 80% mais chances de se absterem de cigarros por pelo menos um ano em comparação àqueles que usaram um vários tratamentos de reposição de nicotina (como adesivos, chicletes e pastilhas).

Descobertas como essas, que mostram que os cigarros eletrônicos podem ajudar os fumantes sob certas condições — todos os participantes receberam ajuda psicológica, o que melhora a taxa de sucesso das tentativas de parar de fumar — foram subestimadas, acreditam os autores, enquanto os riscos para os jovens foram ampliados.

— A mensagem é que esses são dispositivos prejudiciais que não deveriam ser comercializados. Mas a verdade é mais complicada — disse Nancy A. Rigotti, uma das autoras e professora da Escola de Medicina de Harvard e diretora do Centro de Pesquisa e Tratamento de Tabaco no Hospital Geral de Massachusetts.

Os ensaios controlados nem sempre mostram o que teria acontecido em um ambiente do mundo real — que é o que o estudo do JAMA procurou avaliar. Ainda assim, Rigotti e outros pensam que suas conclusões são enganosas.

— O importante aqui é: os "vapes" estão ajudando fumantes que não largariam o vício de outra forma? — questiona Kenneth E. Warner, professor emérito e reitor de gestão em políticas de saúde da Escola de Saúde Pública da Universidade de Michigan e co-autor do estudo citado.

Dificuldades em largar o vício

O estudo do JAMA descobriu que aqueles que eram mais dependentes de nicotina e, portanto, provavelmente tinham mais dificuldade para parar de fumar, também eram os mais propensos a usar cigarros eletrônicos. Mas não tem como dizer, caso os vaporizadores não estivessem à venda, se esse grupo teria continuado a fumar — nesse caso, os cigarros eletrônicos aumentaram o número total de abstêmios — ou se seus membros teriam tentado se abster da nicotina. Sem essa informação, não está claro se os cigarros eletrônicos podem ser uma ferramenta valiosa para parar de fumar, que incentiva alguns fumantes inveterados a abandonar o cigarro.

Os fumantes adultos querem parar: em 2018, cerca de 55% dos entrevistados disseram que tentaram parar no ano anterior; apenas 7,5% conseguiram, de acordo com o CDC. Na verdade, o estudo JAMA, independentemente de como você o analise, ilustra como é difícil permanecer livre do fumo.

— O que não vimos é algo que mudou o jogo no tratamento do vício em nicotina — diz Jonathan M. Samet, reitor e professor da Escola de Saúde Pública do Colorado.

Claramente, os fumantes precisam de mais recursos, diz Alayna P. Tackett, professora assistente da Escola de Medicina Keck, da Universidade do Sul da Califórnia.

— Eles estão tentando parar, querem parar, como podemos apoiá-los da melhor maneira?

Nos EUA, é extremamente difícil dizer se o cigarro eletrônico poderia desempenhar um papel mais favorável. Os produtos disponíveis estão em constante mudança, e os cigarros eletrônicos não são classificados como "um dispositivo para cessar o vício", rótulo que exigiria que seus fabricantes passassem pelo processo de avaliação e pesquisa de medicamentos da FDA, o que eles têm pouco incentivo para fazer.

Como resultado, os cigarros eletrônicos não podem ser promovidos para fumantes como um meio de parar de fumar por empresas ou como um medicamento comprovado por funcionários de saúde.

A consequência bizarra é que, para que os cigarros eletrônicos tenham um amplo impacto positivo na saúde pública, estratégia que está no cerne da decisão da FDA, os fumantes terão que decidir por conta própria fazer a transição para eles.

— A confusão regulatória não ajuda o nosso trabalho — diz Terry F. Pechacek, professor e pesquisador do departamento de políticas de saúde e ciências comportamentais da Escola de Saúde Pública da Universidade Estadual da Georgia, que escreveu um comentário que acompanha o estudo JAMA. — Esse é o cerne da questão.

https://oglobo.globo.com/saude/cigarro-eletronico-entenda-por-que-apesar-dos-riscos-eua-aprovaram-uso-do-dispositivo-25301203




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