monitorACT - Edição 13

23.03.22


 

 

Editorial 

Você já ouviu falar de Talking Trash? É uma expressão em inglês que significa que alguém está falando coisas das quais não se extrai muita coisa, como o discurso de alguns políticos, as longas entrevistas de jogadores de futebol depois de um jogo ou as conversas de muitas das celebridades de plantão. No fundo, é uma expressão nova para a velha e boa palavra em português: embromação, a arte de enrolar.

É esse tipo de enrolação que as empresas que produzem plástico vêm fazendo, numa tentativa de limpeza de imagem, que já começa a ficar embaçada. Afinal, a quantidade de  plástico despejada no planeta é tão absurda que poderia cobrir toda a superfície terrestre, indo do fundo do mar à montanha mais alta.  Micropartículas de plástico são encontradas na fauna marinha e terrestre, em solos, oceanos e até mesmo em placentas. Como vimos em alguns casos da indústria do tabaco, começam a aparecer opções por acordos voluntários para frear a poluição por plásticos. Entretanto, são acordos incapazes de enfrentar a crise gerada por seus produtos, tão ineficazes que as Nações Unidas sugerem um tratado global para este desafio num curto espaço de tempo. É deste tema que trata o artigo que abre o MonitorACT, Talking Trash: As Empresas Estão Interessadas em Acabar com a Poluição Plástica?

Esta edição tem uma peculiaridade. Ela traz mais dúvidas do que certezas, talvez um reflexo dos tempos que estamos vivendo. Por isso, em Para Onde Foi a Participação Social? O Desmonte dos Colegiados e a Ameaça à Democracia, as autoras indagam sobre esse direito garantido na Constituição. Enquanto expõem o desmantelamento de conselhos, dão exemplos concretos sobre as consequências do desmonte à saúde e à segurança alimentar e da fragilidade do momento pelo qual a sociedade brasileira passa. 

O Veneno no Nosso Prato de Cada Dia expõe a consequência do alijamento da participação popular na aprovação de um projeto de lei que coloca em risco a saúde e o meio ambiente: o Pacote do Veneno. Embora tramitasse havia 20 anos, foi colocado em votação no fim do ano passado e, sob protestos, retirado estrategicamente da pauta para voltar de forma sorrateira, no começo do ano legislativo. Apoiado pela bancada ruralista e do agronegócio, acabou sendo aprovado. Ele não só flexibiliza o uso de agrotóxicos proibidos como dá novo nome a esses produtos, agora chamados de pesticidas. Em um prazo mais longo, esses produtos aumentam a insegurança alimentar e contribuem com o êxodo rural, pois destroem terras cultiváveis. Em um país repleto de metrópoles atravessadas pelas desigualdades sociais, pela miséria e pela violência, as cidades teriam a capacidade de absorver estes novos habitantes de maneira digna? É mais uma pergunta que esta edição provoca.

O último artigo,  8M: As Investidas das Indústrias do Tabaco e do Álcool no Mês das Mulheres, volta a um tema recorrente quando se trata de análises da interferência da indústria, a captura do movimento feminista por empresas de produtos que fazem mal à saúde. Como a igualdade de gênero se tornou uma causa global, vemos que fabricantes de cigarros e de bebidas alcoólicas, por exemplo, entenderam a importância das mulheres e de meninas para seus produtos e investem bastante em pesquisas para novos produtos e novas formas de comunicação com esse público. Para as autoras, o mês das mulheres deixa essa questão muito evidente e mostra que políticas públicas para combater fatores de risco também precisam adotar a perspectiva de gênero.

Boa leitura,

Anna Monteiro

 


 

Talking Trash: As Empresas Estão Interessadas em Acabar com a Poluição Plástica?

Por Vitória Moraes, Marília Albiero e Emily Almeida

A poluição causada pela alta produção de plástico é um dos maiores desafios no campo da sustentabilidade ambiental. Além da poluição propriamente dita, as refinarias de plástico figuram entre as maiores emissoras de gases do efeito estufa no planeta, o que lhes atribui certo antagonismo no enfrentamento às mudanças climáticas. Os números apontam que a produção mais que dobrou em um intervalo de 20 anos, e estima-se que chegue à casa de 1,8 bilhão de toneladas até 2050 (PNUMA/ONU e Grida-Arendal, 2013). 

 

 

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura chama a atenção para a contaminação dos mesmos solos onde são cultivados os nossos alimentos, além de relatar a presença de micropartículas plásticas nas fezes humanas e até nas placentas de mulheres grávidas. 

 

 

Embora pouco se saiba sobre os efeitos do plástico sobre a saúde humana, resultados de estudos em animais mostraram que o material lança substâncias químicas potencialmente tóxicas e atuam como desreguladores hormonais, podendo inclusive atravessar a barreira que impede que toxinas acessem o sistema nervoso central, o que chama atenção para o desenvolvimento de possíveis danos cerebrais. As etapas do ciclo de vida do plástico apresentam riscos extremamente prejudiciais à saúde, contribuindo com o desencadeamento de alguns tipos de câncer, problemas reprodutivos e disfunções genéticas em escala global. 

O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente anunciou  acordo que prevê o fim da poluição plástica até 2024. Inger Andersen, diretora-executiva do Projeto, afirma que este é o resultado de maior relevância conquistado pela Assembleia do Meio Ambiente, desde o Acordo de Paris, em 2015. A iniciativa estabelece a criação de um Comitê Intergovernamental de Negociação, com início previsto para este ano, visando à conclusão de uma proposta final de acordo global até 2024. 

 

 

Nas semanas que antecederam o encontro, mais de 70 empresas assinaram um manifesto, criado há dois anos, pela redução da poluição provocada pelo plástico. Corporações do setor de alimentos, como Coca-Cola, Nestlé, Danone, Pepsico e Mondelez, entre os 10 maiores poluidores de plástico do planeta, participaram do manifesto, que foi considerado pela  WWF e pela Ellen MacArthur Foundation um movimento pioneiro, no sentido de ter partido de representantes do mundo corporativo, pela defesa de uma política robusta de redução de plástico. 

 

 

Recentemente, em entrevista ao portal do Fórum Econômico Mundial, o vice-presidente executivo da Nestlé, Leanne Geale, afirmou que o mundo já perdeu tempo demais no debate sobre uma possível regulação do plástico e alertam para a eficácia de uma estratégia coordenada em nível global em detrimento a tentativas de regulação em cada país. 

Mas aí entram em cena os dados do relatório 'Talking Trash’ ou 'Falando de plástico - o guia corporativo de falsas soluções para a crise do plástico", de 2020, que aponta que a maior parte das iniciativas voluntárias propostas pelo setor corporativo como solução no enfrentamento da crise do plástico foram ineficazes. Assim como já tínhamos visto em outros acordos voluntários na área do tabaco ou da alimentação.

 

 

Elaborado pela fundação Changing Markets, o documento analisa compromissos voluntários adotados pelas dez maiores indústrias poluidoras por plástico (Coca-Cola, Colgate-Palmolive, Danone, Mars Incorporated, Mondelēz International, Nestlé, PepsiCo, Perfetti Van Melle, Procter & Gamble e Unilever), e mesmo os compromissos mais ambiciosos não são proporcionais à severidade da poluição que causam. A maioria dos compromissos apresentam sérios problemas de transparência e responsabilidade, uma vez que não publicam dados independentemente verificados e não aplicam as suas políticas e os seus compromissos de uma maneira consistente em todos os mercados em que operam. 

O relatório alerta que táticas para atrasar o andamento da regulação andam de mãos dadas com campanhas de mídia e acordos voluntários que servem apenas para a distração. Nos Estados Unidos, por exemplo, a pesquisa revela como a indústria transferiu a culpa e a responsabilidade pela poluição plástica das corporações para os consumidores e as autoridades públicas, enquanto promove a reciclagem como uma desculpa conveniente para produzir ainda mais plástico. 

O levantamento ainda traz casos em que evidencia o discurso do setor regulado de apostar excessivamente na ciência e na tecnologia para a solução dos problemas ambientais, enquanto as iniciativas que realmente podem resultar em uma mudança estrutural são embarreiradas. Lembra algo representado na sátira dirigida por Adam McKay, Não olhe para cima (2021), na qual a população se ilude ao depositar todas as fichas no gigante da tecnologia (à la Elon Musk) para evitar a iminente catástrofe global.

Entre outros aspectos, o Talking Trash conclui que "a imagem que surge mostra uma rede bem organizada de organizações que fazem lobby em todos os níveis, mobilizando-se até mesmo contra a menor tentativa de restringir ou regular a produção de plástico. Também revela a hipocrisia de grandes corporações multinacionais, como a Coca-Cola, que recentemente proclamou apoio a alguma legislação na União Europeia, mas ainda faz lobby contrário na África, China e Estados Unidos".

Assim, as iniciativas voluntárias não apenas falham em conter a crise do plástico, mas também têm sido utilizadas pelas empresas como tática para atrasar e obstruir uma legislação progressista, enquanto distraem e culpabilizam os consumidores e governos com promessas vazias e falsas soluções. 

 


 

Para onde foi a participação social? O desmonte dos colegiados e a ameaça à democracia

Bruna Hassan e Mariana Pinho

Uma das primeiras ações de Jair Bolsonaro ao tomar posse como presidente da República, em 2019, foi a extinção de colegiados da administração pública federal, incluindo o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), a Comissão Nacional para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (CNODS) e a Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (Conicq). 

Mais de três anos depois, esses e outros tantos colegiados ainda aguardam decisão sobre sua reconstituição, o que parece cada vez mais distante. A exemplo da recente revelação do portal O Joio e O Trigo sobre ataques de aliados do governo à Conicq, que, vale ressaltar, tem participação exclusiva de integrantes do próprio governo federal. Mais uma evidência do desinteresse pela aproximação com a sociedade civil e da falta de comprometimento pelos processos de participação social garantidos pela Constituição de 1988. 

À época do decreto que extinguiu os órgãos, o então ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, justificou, em documento oficial, que o ato seria pela “racionalização administrativa” e pelo controle “da incrível proliferação de colegiados”. E a criação de novos colegiados deveria seguir, a partir daquele momento, “regras rígidas destinadas a evitar colegiados supérfluos, desnecessários, de resultados práticos positivos desconhecidos e com superposição de atribuições com as de autoridades singulares ou de outros colegiados”. Lorenzoni finaliza o documento com sua visão sobre a Política Nacional de Participação Social, adjetivando-a como uma “aberração” e um “decreto bolivariano”, levando, assim, a sua total revogação. 

Vale lembrar que, quando candidato à presidência, Bolsonaro já havia manifestado colocar “um ponto final em todos os ativismos no Brasil”, o que resultou em uma nota de repúdio assinada por dezenas de organizações da sociedade civil. 

Na reportagem, publicada em fevereiro último, O Joio e O Trigo revelou um vídeo em que o deputado federal Marcelo de Moraes, que teve sua campanha financiada por empresa de tabaco e abriu portas no Congresso Nacional e Poder Executivo para representantes das fumageiras, descreve a articulação sobre a extinção e não recondução da Conicq com o ministro Onyx Lorenzoni. Ao questionar a legitimidade da Conicq, os gestores públicos ignoram que a continuidade do órgão está amparada pela orientação de 2019 do então ministro da Saúde Henrique Mandetta, posteriormente ratificada pelo atual chefe da pasta, Marcelo Queiroga, e em um parecer da Advocacia Geral da União. Em sua fala no vídeo, Moraes dá margem ao entendimento de que ele defendeu também a extinção de outros colegiados. 

 

 

A gravação é o registro oficial da reunião ordinária da Câmara Setorial do Tabaco, colegiado que não sofreu com o decreto presidencial e que faz parte do conselho que assessora, ao lado de outras câmaras, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento em assuntos relativos à Política Agrícola e Plano Safra do Brasil. Ela é composta por representantes do governo e do setor produtivo e pode ser entendida como uma afronta à Convenção-Quadro, ratificada pelo Brasil há 17 anos, no artigo 5.3, que versa sobre a proteção das políticas dos interesses comerciais garantidos pela indústria do tabaco.

Apesar das muitas vitórias alcançadas pelo Brasil, sem a Conicq, a Política Nacional fica desarticulada e enfraquecida, impedindo a redução das mortes e doenças causadas pelo tabaco e a proteção dos agricultores, que vêm sendo descartados da cadeia produtiva. Em resposta ao episódio da reunião da Câmara Setorial, cerca de 80 organizações assinaram uma nota de repúdio, levada às autoridades. 

No mesmo sentido, a extinção do Conselho da Segurança Alimentar, o Consea, e o desmantelamento da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, a Losan, colocam um freio em conquistas de décadas, como a instituição do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Composto como um órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República e com dois terços de participação da sociedade civil, o Consea teve o papel fundamental de viabilizar o diálogo entre órgãos do governo e a sociedade civil, o que permitiu a formulação e o aprimoramento de políticas e programas que tratavam além do consumo, pois incluíam ações voltadas para a produção, o abastecimento e a comercialização de alimentos. 

Entre as conquistas desse espaço colegiado, estão a criação do Programa de Aquisição de Alimentos da agricultura familiar e mudanças no Programa Nacional de Alimentação Escolar para que a aquisição mínima de 30% dos alimentos viesse da agricultura familiar.

Em 2019, a sociedade civil organizada se mobilizou na tentativa de evitar tal retrocesso, a exemplo do banquetaço nacional em que mais de 30 mil refeições foram oferecidas e demonstrações do papel do Conselho e a consequência de sua extinção, além de pedidos de assinatura de uma petição internacional. Notas de repúdio foram emitidas por diversas entidades e movimentos sociais, a exemplo das cartas da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), de conselheiras(os) representantes da sociedade civil no Consea

 

 

 

 

A manutenção do Conselho teve idas e vindas. Uma Comissão Especial Mista foi criada em maio de 2019, com consequente suspensão da medida provisória e recriação do Conselho, posteriormente vetada por Bolsonaro. Em setembro de 2019, o Conselho foi extinto definitivamente, com 299 votos de parlamentares do Congresso Nacional a favor da manutenção do veto do presidente, contra 162 contrários.

O enfraquecimento  do órgão em nível federal abriu espaço para fragilidades nos colegiados estaduais e municipais de participação coletiva, que mantiveram-se atuantes. Como exemplo, está a candidatura e nomeação da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) e Sociedade Rural Brasileira (SRB), em maio de 2021, pelo governador João Dória, aos cargos de presidência e vice-presidência do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo (Consea-SP). Abordamos esse caso em outra edição do MonitorACT, no artigo “Porque a raposa não deve tomar conta do galinheiro”.

Ainda em fevereiro deste ano, o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde também foi alvo de conflito de interesses ao firmar parceria com a Coca-Cola Brasil para o auxílio à aquisição de 400 refrigeradores para armazenamento de vacinas em municípios com baixo IDH. A Aliança pela Alimentação Saudável e Adequada caracterizou a ação, em carta de repúdio, como social washing ao, por fim, promover e tentar limpar a imagem de uma empresa que fabrica produtos que aumentam o risco de Doenças Crônicas Não Transmissíveis, condições que agravam o prognóstico de pacientes com Covid-19. 

 


 

O Veneno no Nosso Prato de Cada Dia

Por Vitória Moraes

A resposta da sociedade civil nas redes sociais, no final do ano passado,  repudiando o projeto de lei 6299/2002, o chamado Pacote do Veneno, fez com que ele fosse retirado estrategicamente da pauta da Câmara dos Deputados, naquele momento, e voltasse à votação na segunda semana de atividade do ano legislativo, surpreendendo a todos. Infelizmente, foi aprovado por 301 votos favoráveis a 150 votos contra. Sem a participação popular, o projeto agora caminha para debate no Senado Federal.

O Pacote do Veneno é um conjunto de projetos de lei que vêm sendo modificados no âmbito legislativo há 20 anos, com foco na flexibilização do registro de agrotóxicos. Ele agrava ainda mais o contexto de insegurança alimentar do país, conforme já destacado em nota da Aliança pela Alimentação Saudável e Adequada. A desburocratização que pressupõe tem como consequência a liberação de insumos com efeitos sabidamente prejudiciais à saúde, englobando substâncias com potencial teratogênico, mutagênico e cancerígeno. Além disso,  o termo agrotóxico cai por terra, sendo substituído por pesticida, dando menos transparência ao consumidor. 


 

 

Segundo o 6º Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, realizado em 2022 pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e da Organização Meteorológica Mundial, a simplificação das paisagens e a ameaça à biodiversidade, frutos do modelo agroindustrial moderno baseado na plantação de monoculturas em grandes pedaços de terra com a utilização intensiva de insumos agroquímicos, trazem preocupações em relação ao futuro do planeta, uma vez que o uso irrestrito de contaminantes provoca a morte de plantas e animais, cujo resultado é um quadro de desbalanço ecológico, além da contaminação de rios e solos, que impactam diretamente a saúde das pessoas. 

 

 

Como um exemplo, comunidades maranhenses denunciaram, em fevereiro, o despejo de contaminantes nos rios do Parque Estadual do Mirador, o que causou danos a  cerca de 250 famílias que vivem na região, em sua maioria compostas por pequenos agricultores. Alguns moradores relataram o aparecimento de feridas e queimaduras na pele, bem como a presença de dores de cabeça e diarreias. Estes são apenas alguns dos efeitos nocivos destas substâncias sobre a saúde, uma vez que uma gama de estudos indicam a relação existente entre a exposição aos agrotóxicos e o surgimento de distúrbios neurológicos, alguns tipos de câncer e até mesmo problemas psicológicos. 

Mas quem pensa que a questão afeta apenas a população rural se engana. Apesar de menor escala, o problema também atinge as zonas urbanas. Um estudo realizado em uma pequena comunidade da Bahia mostra que a chegada de uma empresa fumageira ao local, com alta atividade de aplicação de agrotóxicos nas plantações, foi o principal motivo para o aumento significativo das taxas de êxodo rural na região, o que significa menos mão-de-obra disponível e fuga de conhecimento do campo. Em um país repleto de metrópoles atravessadas pelas desigualdades sociais, pela miséria e pela violência, as cidades teriam a capacidade de absorver estes novos habitantes de maneira digna?

Apesar de mais de 50% dos produtores brasileiros ser composta por pessoas não-brancas (Censo Agro 2017/IBGE), quem vem dando as cartas na agricultura é um conjunto de homens brancos, que possuem relações com multinacionais, não só do ramo dos agrotóxicos, mas também com a indústria do tabaco, de ultraprocessados, de combustíveis e até com agentes do mercado financeiro, já destacava o Balanço Contra os Agrotóxicos e pela Vida de 2020

 

 

A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), principal interessada na ‘Lei do Alimento mais Seguro’, como vem sendo tratado PL do Veneno por portais financiados pelo agronegócio, é patrocinada por empresas como Bayer, Basf, BRF, JBS, Bunge, Syngenta e Cargill. O próprio relator do projeto possui ligações com empresas japonesas de agrotóxicos, figurando um grande exemplo de conflito de interesse, que põe em cheque a saúde de milhares de brasileiros. 

Os fabricantes de agrotóxicos recebem incentivos fiscais há décadas, enquanto políticas de garantia da segurança alimentar e nutricional e de assistência social vêm sendo sistematicamente sucateadas por falta de orçamento desde 2016. Em um país que naturalizou o passar da boiada cotidianamente,  é assustador pensar no que mais pode ser liberado daqui pra frente. A questão ultrapassa o debate sobre consumir orgânicos ou não, já que os agrotóxicos estão sendo encontrados até nos ultraprocessados.

A questão é sistêmica. Estamos diante de uma decisão política que pode provocar danos irreparáveis ao meio ambiente, bem como uma sobrecarga do já fragilizado SUS, não só com casos de intoxicações, mas também por pessoas com doenças crônicas. Estamos prestes a encarar uma onda de migrações dentro do próprio país, acentuando o inchaço demográfico nas cidades, problema que está estritamente relacionado com a miséria e a fome.  Esta questão expõe uma violação gravíssima ao Direito Humano à Alimentação Adequada, sobretudo o problema de se enxergar o  alimento como mercadoria, e não como direito. 

Alimento sem veneno não deve ser fetiche, restrito às poucas pessoas que ainda conseguem realizar suas escolhas, e sim um direito e é o caminho para a construção de uma sociedade mais equitativa, sustentável e saudável. 

 


 

8M: As Investidas das Indústrias do Tabaco e do Álcool no Mês das Mulheres

Mariana Pinho, Laura Cury, Alexandre Carvalho e Emily Azarias

A busca por igualdade de gênero, liderada pelos movimentos de mulheres, vem historicamente abrindo portas para profundas transformações sociais, como conta a própria origem do Dia Internacional das Mulheres. Celebrado em 8 de março, a data remete às passeatas de mulheres nova-iorquinas, em 1909 e 1911, por melhores condições de trabalho, direito ao voto e salários melhores, e de russas contra a Primeira Guerra Mundial e a fome, em 1917.

De lá para cá, houve muitas conquistas, ainda que haja muito o que avançar na prática. A igualdade de gênero se tornou uma causa global. Inclusive para as empresas. Por ocasião do 8 de março, é comum haver ações supostamente de responsabilidade social visando o empoderamento feminino e a igualdade de gênero. Custe o que custar, como no caso das companhias de produtos nocivos à saúde como o tabaco e o álcool, que há muito entenderam a importância das mulheres (e meninas) no mercado global para seus produtos e como fonte de novos clientes. Assim, conduzem pesquisas para entender melhor como direcionar seus produtos e aumentar seus lucros.

 

 

 

As empresas de tabaco, por exemplo, têm investido em estratégias  de marketing específicas, lançando marcas com design e mensagens voltadas para o público feminino e atuando massivamente nos ambientes reais e virtuais onde as mulheres estão presentes. Só no ano passado, por exemplo, a BAT gastou um bilhão de libras esterlinas na promoção de seus produtos no TikTok, onde 60% dos usuários são  mulheres..

Na região rural, elas também estão no radar. O tabaco é uma cultura tradicional e patriarcal, mas para a manutenção do negócio, o domínio masculino no setor vem sendo superado. Em 2017, 10% dos contratos da BAT Brasil foram assinados por mulheres. As empresas fazem investimentos maciços em treinamento e capacitações através de uma parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) na implantação de programas como o “Com licença eu vou à luta" e “Mulher Atual”. Para ampliar a adesão feminina aos contratos, são concedidas premiações no Congresso Nacional das Mulheres do Agronegócio. Essas estratégias também foram abordadas em outras edições do MonitorACT, nos artigos  “O movimento feminista capturado pelas empresas” e “O prêmio que não compensa”

 

 

 

Uma análise do pesquisador do Instituto Nacional do Câncer André Szklo alerta que a queda do tabagismo entre mulheres no Brasil foi menor do que a projeção feita pela Organização Mundial da Saúde. Para a faixa etária de 18 a 24 anos, as mulheres lideram em disparada a iniciação ao uso diário de produtos derivados do tabaco que emitem fumaça (19,8%) em relação aos homens (8,9%). 

E não é só no tabaco que isso acontece. O aumento das propagandas de bebidas direcionadas às mulheres e as mudanças nos papéis atribuídos aos gêneros também levaram a um aumento do consumo feminino de álcool. Na soma dos lucros, a conquista de igualdade fica em segundo plano, o que não é novidade para as empresas de cigarro. Basta resgatar propagandas mais antigas, feitas antes da regulamentação do tabaco ser disseminada em vários países. 

Tanto que, em 2019, a organização escocesa Alcohol Focus Scotland levantou a campanha #DontPinkMyDrink, criticando as estratégias da indústria do álcool que, após anos retratando mulheres na publicidade como objeto e sexualizando-as, passou a associar seus produtos às amizades, feminismo e empoderamento das mulheres.

Com isso, entre 2006 e 2019, houve aumento no consumo de bebidas alcóolicas e, em específico, houve um crescimento de 70,5% no consumo abusivo de álcool entre as mulheres (Vigitel, 2020). A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2019 também apresentou maior aumento de experimentação entre meninas (36,8%), contra 32,3% entre os meninos. 

 

 

 

Com relação ao uso do álcool, deve-se notar que as mulheres tendem a ser mais vulneráveis aos seus efeitos devido a diferenças em composição biológica. A ingestão de álcool também aumenta o risco de desenvolvimento de câncer de mama, mesmo com o consumo diário de apenas uma dose de álcool. Qualquer quantidade de bebida alcoólica durante a gravidez representa risco para mãe e para o bebê, que pode desenvolver Síndrome Alcóolica Fetal (SAF), causando prejuízos no desenvolvimento cognitivo e comportamental da criança.

Fatores sociais também afetam as mulheres de maneira desproporcional devido às jornadas duplas e triplas geralmente impostas. A pandemia da Covid-19 exacerbou isso, com as indústrias de tabaco e álcool se aproveitando do contexto de estresse e ansiedade: durante os primeiros meses da pandemia, o aumento de cerca de 10 cigarros ao dia foi mais comum entre as mulheres (29%) do que homens (17%), entre aqueles que continuaram fumando (Convid/Fiocruz).  

Uma perspectiva de gênero nas políticas públicas é imperativa para atingirmos um futuro sustentável. Essa construção passa pela formulação e efetiva implementação de políticas públicas baseadas em evidências para reduzir o consumo de produtos não saudáveis e para promover a saúde e os direitos humanos, com a redução da interferência da indústria do tabaco e a do álcool na saúde pública. Em especial, no que trata da regulação da publicidade, propaganda e marketing - incluindo ações de responsabilidade social corporativa e de empresas que tentam se apresentar como “parte da solução”.

 


 

Ficha Técnica

Revisão e edição: Anna Monteiro

Arte: Ronieri Gomes

Equipe de monitoramento

Anna Monteiro

Bruna Hassan

Camila Maranha

Denise Simões

Emily Azarias

Fabiana Fregona

Laura Cury

Mariana Pinho

Marília Albiero

Victoria Rabetim

Vitória Moraes




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