'Não se destrói o patriarcado com fome': nutricionistas levam em conta gênero, raça e classe para cuidar do corpo e da saúde

13.01.21


O Globo

RIO - Eles defendem a existência de políticas públicas que permitam à população o acesso a uma alimentação saudável e chamam a atenção para a importância dos recortes de classe, gênero e raça ao se falar em nutrição. Avessa a dietas restritivas e a receitas milagrosas para o emagrecimento, uma nova geração de nutricionistas adeptos da abordagem comportamental vem utilizando as redes sociais para incentivar as pessoas a ter uma relação melhor com a comida, sem demonizar alimentos ou culpabilizar os indivíduos.

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— Tem muita gente falando sobre nutrição, alimentação e saúde nas redes sociais e que, às vezes, não tem nem formação para isso, ou passa as informações de uma maneira superirresponsável. O papel dos nutricionistas e de outros profissionais é levar conhecimento de qualidade e com evidência científica, de forma consciente — diz a nutricionista Fernanda Imamura, de São Paulo. — Às vezes tem gente que não quer. Eu entendo, é muito estresse, é cansativo, mas acho que a gente tem um papel muito importante. Porque, se nós não falarmos, muitas outras pessoas vão falar, de maneira errada. Estamos remando contra a maré mesmo. Temos muito menos engajamento e seguidores que esses perfis. Mas acho que é um trabalho de formiguinha: uma pessoa vai ver, a outra vai compartilhar, outra vai se identificar... Artigos científicos são algo para nós, profissionais. Os pacientes querem um conteúdo num formato mais fácil de ler — explica Imamura.

A nutricionista Fernanda Imamura Foto: Divulgação
A nutricionista Fernanda Imamura Foto: Divulgação

Embora o estudo do comportamento alimentar já venha sendo realizado há muitos anos por profissionais de diversas áreas, entre elas a psicologia e a sociologia, foi em 2014, com a criação do Instituto Nutrição Comportamental (INC), que essa abordagem ganhou esse nome. Ela leva em conta aspectos fisiológicos, sociais, culturais e emocionais da alimentação, e não apenas o peso do paciente. Entre as técnicas utilizadas pelos profissionais, está o mindful eating (comer com atenção plena). Eles também defendem que não existem alimentos proibidos e que restrição leva à compulsão, entre outras coisas.

Isso não quer dizer que a abordagem negue os conhecimentos clássicos da nutrição: ela apenas busca olhar para o paciente de forma mais completa. O foco principal não está no peso, e sim no comportamento da pessoa ao comer.

— A gente vai trabalhar várias questões que estão relacionadas à alimentação: quantidade, qualidade, o que a pessoa come, como ela come, como é a relação dela com a comida. Não é que a gente vá ignorar o peso, mas ele vai ser uma consequência do processo. Existem vários fatores relacionados a ele. Não é uma conta fechada de que, se eu mexer na alimentação, meu peso automaticamente vai mudar dessa maneira — explica Imamura.

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Os estudos de ativistas do feminismo, do movimento negro e do movimento antigordofobia sobre alimentação também servem como alicerce para o trabalho desses profissionais. Imamura, por exemplo, já chegou a se envolver em polêmicas: no ano passado, a chef Paola Carosella associou a obesidade ao consumo de alimentos ultraprocessados, a nutricionista respondeu e começou a ser atacada por fãs da jurada do Masterchef.

— A gente tem que desculpabilizar o indivíduo. Porque tem muito esse papo de “Ah, não pode comer ultraprocessado.” Tem um discurso de que ele está comendo aquilo porque quer, e que deveria mudar e ter força de vontade para isso. Na verdade, se a gente vai ver a realidade do país, o ultraprocessado é mais acessível, é mais barato e, às vezes, é a única coisa que a pessoa tem para comer e tem tempo de preparar. Temos que olhar para as políticas públicas, a questão do acesso aos alimentos, a questão social. Não é que eu discorde [de que alimentos in natura devem ser prioridade], eu concordo, mas é preciso prestar atenção em outras questões: por que a pessoa está comendo mais ultraprocessado? — diz.

O nutricionista Erick Cuzziol, que atende em São Paulo e São Caetano do Sul (SP), lembra que, enquanto publicações científicas estão batendo em teclas como o lobby da indústria alimentícia e a necessidade de políticas públicas para o acesso a uma alimentação saudável, ainda predomina na sociedade um discurso que joga toda a responsabilidade no indivíduo.

— Muitas pessoas dizem: “Ah, mas uma feira não é cara.” Valor não é só dinheiro, tempo também é algo que te custa. Você comprar um pé de alface, lavar e preparar, dá trabalho. Ele estraga rápido, e tem região em que a geladeira nem ligada fica, porque as quedas de luz são constantes. E outra coisa: você tem um macarrão instantâneo, que custa R$ 1,99, ou um pé de alface, que sai por R$ 1,50. Esse macarrão instantâneo dura meses, é só pôr água. E eu tenho colegas que falam: “Mas alguém quer ter trabalho? Todo mundo quer o mais fácil.” Isso não é querer o mais fácil. Se a gente para de pensar só em peso, consegue enxergar que existe um universo de situações que precisam mudar urgentemente para parar de afetar a saúde das pessoas. Quando você está no serviço público, se depara com uma população que está precisando de qualidade de vida — comenta.

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Nutrição antirracista

Gabriela Vilasboas, de Guanambi (BA), chama atenção para a importância de uma nutrição antirracista, ou seja, que leve em consideração o recorte racial e combata o racismo estrutural também nas questões que impactam o acesso à comida. A nutricionista cita a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), divulgada em novembro pelo IBGE, relativa ao período de 2017 a 2018: 77,8% de toda a pobreza se concentram “na população cuja pessoa de referência da família era preta ou parda”. As casas comandadas por pessoas pretas têm um percentual de apenas 15,8% de segurança alimentar, enquanto as chefiadas por pessoas pardas totalizam 36,9%. Já nos lares comandados por pessoas brancas, o percentual de segurança alimentar chega a 51,5%.

A nutricionista Gabriela Vilasboas Foto: Divulgação
A nutricionista Gabriela Vilasboas Foto: Divulgação

Ela observa que é preciso combater o que o norte-americano Llaila O. Afrika (autor de, entre outros livros, “Nutricide: The Nutritional Destruction of the Black Race”, em inglês, “Nutricídio: A destruição nutricional da raça negra”) chama de nutricídio da população negra.

— Onde é que está a maior parte das pessoas negras nas cidades? Nas zonas periféricas, onde os alimentos in natura, as verduras e as frutas, chegam com maior dificuldade. Quando a gente fala em cultura alimentar africana, as pessoas imaginam, por exemplo, o acarajé. No imaginário coletivo, são apenas os alimentos que foram consumidos e adaptados pelos negros escravizados. Mas não é só isso. Ela é riquíssima em frutas, verduras, raízes, e nós estamos nos distanciando disso para consumir mais alimentos industrializados, que são os produzidos pelos colonizadores. E são eles que estão levando a população negra a várias doenças — pontua.

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Há estudos que mostram a maior incidência de hipertensão e diabetes em pessoas negras. Porém, geralmente essas pesquisas ignoram questões socioeconômicas.

— Aí alguns falam: “A pessoa negra tem maior probabilidade de desenvolver, por exemplo, uma doença cardíaca, de ter pressão alta”, e associam isso apenas à questão genética, mas desconsideram todo esse processo social e econômico. Pensar numa nutrição antirracista é entender, sim, as questões genéticas da população negra, mas principalmente as questões sociais e ambientais desse racismo que está estruturado na sociedade, e combater isso, para de fato levar uma alimentação adequada, que é direito de todos — analisa a nutricionista. — Sem contar que eu estou falando aqui do alimento in natura, mas, no nosso país, onde a cada dia que passa está sendo liberado mais um tipo de agrotóxico, isso realmente é saudável? Quem tem acesso a orgânicos?

Gabriela Vilasboas explica que, muitas vezes, esse acesso à comida saudável é algo que começa a ser negado à população negra desde muito cedo.

— Por exemplo, uma mulher que tem uma jornada tripla: ela teve um bebê, é empregada doméstica, vai trabalhar na casa de outras pessoas, e ainda tem que dar conta das tarefas na sua própria casa. Para trabalhar, ela precisa deixar o filho em casa, ou na casa de alguém. Pode ser, inclusive, que esse filho esteja em período de amamentação. Então, o seu direito à alimentação já começa a ser negado desde então, porque sua mãe precisa trabalhar. Já entra uma alimentação complementar, que vai ser baseada em produtos industrializados — diz Vilasboas.

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Gordofobia na mira

A gordofobia também está na mira desses profissionais. Erick Cuzziol, que usa o nome Nutricionista Gordo em suas redes, busca levar seu conhecimento para ajudar a combater essa forma de discriminação. Para ele, embora a obesidade seja considerada uma doença, ela ainda é vista como “falta de vergonha na cara”.

— Ela foi classificada como doença para se cobrar um tratamento mais sério, mais humano, mais eficiente, com mais cuidado e cautela nos embasamentos científicos, mas não se teve essa visão. Ainda se enxerga a obesidade como um comportamento, uma falha de caráter. Então, quando eu recebo um paciente obeso, sempre tento mostrar para ele que é uma condição crônica e que ele não pode pensar: “Agora eu vou emagrecer X, Y ou Z curei, acabou.” Não. Essa pessoa precisa de qualidade de vida. Precisa, de maneira progressiva, sentir benefícios. Por exemplo: “Minha disposição melhorou”, “Meu sono melhorou”, “Eu não estou tendo mais tanta vontade de doce”. Não adianta colocarmos essa pessoa em um sistema no qual a gente vem percebendo que quase ninguém se enquadra. E aí vai dizer que a culpa é dela? Está na hora da gente falar: a culpa é do sistema, né? — afirma.

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As questões de gênero também entram nessa receita. Mesmo mulheres brancas que não são gordas acabam sendo afetadas pela pressão estética — e, consequentemente, estabelecendo uma relação nada saudável com a comida. Fernanda Imamura, que viralizou com a frase: “Não se destrói o patriarcado com fome”, conta que a inspiração veio do livro “O mito da beleza”, de Naomi Wolf, e de sua própria experiência em consultório.

— Às vezes, a mulher é feminista, entende toda a luta, mas não percebe o quanto a dieta também é uma forma de opressão. Tem sido importante esse processo de mostrar que as coisas andam juntas — afirma. — A Naomi Wolf fala que fazer dietas é o sedativo político mais potente na história das mulheres. Ao longo do livro, ela vai contando o quanto a dieta é uma forma de oprimir as mulheres, ela tem um papel importante no patriarcado em que a gente vive. Também pude observar as falas das mulheres contando coisas como: “Eu estava fazendo uma dieta e, numa reunião de trabalho, eu não conseguia pensar em nada, só em comida.” É muito comum ouvir isso de pacientes, de a pessoa não ter nem tempo nem energia para focar em mais nada. E que algumas ficam o tempo todo nesse círculo vicioso, que é uma forma de silenciamento das mulheres.

https://oglobo.globo.com/celina/nao-se-destroi-patriarcado-com-fome-nutricionistas-levam-em-conta-genero-raca-classe-para-cuidar-do-corpo-da-saude-24833219?GLBID=1178ac001583b0f3b04d8d6bd7a643c8b74397a4d52317243754e6d46376948306a6d527048325163624e6776303249456652785557734b4c304a734a515541664946656f735677596a635042587347366c52534271624949486f2d794e45347a6e62576f54673d3d3a303a756e7470617577696d7374617761716e7479676b




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