monitorACT - Setembro

13.09.21


 

Editorial

Captura. Substantivo feminino que significa o ato ou efeito de capturar. Apreensão. Prisão. Conquista. Arresto. Confisco. Tomada. 

Os significados de captura são algumas das palavras que podem ser usadas para definir os movimentos que temos visto de corporações gigantescas em torno de causas ou de ações capazes de melhorar suas imagens junto ao consumidor e, no fim, vender mais produtos. Sejam quais forem esses produtos, para o público que for. O que vale é vender, e parecer que estão oferecendo ajuda acima de qualquer suspeita. Vemos também movimentos de captura de ideias, como se ideias precisassem ficar guardadas dentro de caixas bem fechadas, para que não saiam e conquistem pessoas, que podem a vir a questionar e mudar estruturas.

A captura de ideias vem se dando pela educação, a partir da formação inicial de crianças, e está retratada em Quando o agronegócio encontra a escola, que apresenta como movimentos ligados ao agro estão se infiltrando em escolas e cursos superiores. A partir desta infiltração, coordenada e capilarizada pelo país, ocorre a manipulação de grupos de pais e mães de estudantes, o monitoramento de livros didáticos, a perseguição a editoras e a professores, a interferência no currículo escolar. A intenção é não deixar visões antagonistas ao setor prevalecerem. O agro é pop, gera empregos, gera riqueza, alimenta o país, este deve ser o mantra a ser repetido indefinidamente, sem questionamentos e, para que a população pense desta forma, é preciso agir na raiz da formação.

Em Portas giratórias e modelos de governança multipartite: um olhar crítico, discute-se a influência assimétrica de empresas privadas em relação a outros atores sociais, especialmente em grandes negociações que envolvem políticas públicas. Nesta captura política, as decisões sobre a elaboração e modificação das leis, que cabem ao Poder Legislativo, sua interpretação e aplicação, competência do Judiciário, e o desenho e execução das políticas públicas, tarefa do Executivo, são influenciadas para que seja favorecido o lucro. É possível perceber que nada de significativo será mudado nos sistemas alimentares, por exemplo, enquanto empresas fabricantes de produtos que  trazem danos à saúde e ao meio ambiente estiverem na mesa de negociação de políticas.

Fome: uma escolha política de governantes mostra a captura de uma causa, do bem-estar e saúde de uma nação como um todo. O texto trata da insegurança alimentar, que já atinge ao menos metade dos brasileiros, enquanto a sua forma mais grave, expressa pela fome, acomete 19 milhões de pessoas. Empresas investem em soluções destinadas a salvar a vida de crianças famintas em contextos de guerra ou calamidades. Quem seria contrário a gestos como estes, as autoras perguntam, para logo depois explicarem que a questão gira em torno de patentes, significando que pessoas que desejam produzir seu próprio produto com base em produtos locais não podem fazê-lo.

Por último, vivemos a captura do tempo, da diversão, do entretenimento, pelas redes sociais. E de certa forma, a captura da juventude para novos produtos de tabaco. Em TikTok: onde tudo #pod, as autoras apresentam dados impressionantes sobre promoções e vendas de vaporizadores, cigarros eletrônicos ou pods, como são chamados, na plataforma Tik Tok, um sucesso absoluto entre pessoas de até 34 anos. Desta vez, os jovens não são só o público-alvo do marketing, mas eles próprios estão promovendo e comercializando os produtos, além de despertarem interesse nas crianças, que podem receber as encomendas junto de balas e se tornarem clientes fidelizados.

Boa leitura

Anna Monteiro

Diretora de Comunicação

 


 

Fome: uma escolha política de governantes

Vitoria Moraes e Camila Maranha

 



 

 

O Brasil atravessa um cenário lamentável de desmonte de políticas públicas relacionadas à soberania e segurança alimentar e nutricional desde 2016. A adoção de uma agenda neoliberal culminou na negligência de necessidades sociais, como o Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequada (DHANA), fato exacerbado pela pandemia provocada pela Covid-19.

Diante da situação emergencial da insegurança alimentar que já atinge metade dos brasileiros e a fome acomete 19 milhões de pessoas, grandes empresas decidiram investir em ações de solidariedade, com campanhas de arrecadação de alimentos e doações.

A Ambev foi mais longe. A empresa lançou um alimento líquido achocolatado à base de malte, adicionado de nutrientes, para doação. Com a venda proibida, as unidades do produto foram distribuídas para famílias em situação de vulnerabilidade no Rio de Janeiro e São Paulo, previamente assistidas pela Central Única das Favelas (CUFA) e a organização Gerando Falcões. Segundo a Ambev, após diversos estudos e análises, que não foram citados, foi possível chegar a um produto dito altamente nutritivo, rico em vitaminas A, B6, D e E, fonte de vitaminas B1 e B2, cálcio e magnésio e adicionado de proteína vegetal.

O episódio Corpos em Disputa, do podcast Prato Cheio, de O Joio e O Trigo, deixa nítido que esta não é uma estratégia nova. O episódio cita o produto Plumpy Nut, fabricado pela Nutriset, uma empresa francesa. É uma espécie de manteiga de amendoim acrescentada de vitaminas e minerais, cuja finalidade é tratar crianças em situação de desnutrição severa e que possui a maior parte de sua produção destinada à Unicef. É um produto considerado representativo para o combate à fome, de uso terapêutico, que deveria ser usado quando não se pode preparar os alimentos naturais, e que vem sendo inclusive destacado nas propagandas de grupos de ajuda humanitária como os Médicos sem Fronteiras. A pesquisadora Marion Nestle alerta que a defesa de produtos alimentares, como o Plumpy Nutt, destinado a salvar a vida de crianças famintas poderia até parecer um tema para o qual não poderia haver controvérsia. Afinal, quem seria contrário a algo assim? A pergunta que se deveria fazer não é quem, mas quando se seria contra isso?  A resposta é simples: quando há patentes envolvidas, significando que pessoas que desejam produzir seu próprio produto com base em ingredientes locais não podem fazê-lo.

A questão em torno do desenvolvimento de produtos ditos milagrosos está atrelada a uma ótica reducionista do problema da fome e da alimentação em si. Enxergar os alimentos como um grande combo de nutrientes, cujo único objetivo é a funcionalidade do organismo, exclui todos os outros sentidos da comida, que perpassam por fatores como história, cultura, afeto e ancestralidade. Mesmo assim, grandes empresas do setor de alimentos e bebidas vêm enxergando cada vez mais esse tipo de ação como uma prática na qual vale a pena investir, para além dos benefícios da melhoria da imagem e de reputação em si, mas também pelo fato de que famílias em situação de vulnerabilidade representam um potencial grupo de consumidores futuros. Isso é descrito no documentário Indústria da Obesidade (título original em alemão “Globale Dickmacher”) de Joachim Walther, em que são apresentadas estratégias das indústrias para atrair a população de baixa renda ao consumo de ultraprocessados, deixando de consumir a comida tradicional local.

Vale resgatar aqui que a Ambev é uma das empresas do setor de alimentos e bebidas que mais lucram no Brasil, não só através da comercialização de seus produtos, mas também por meio de subsídios milionários e sonegação de impostos. Segundo uma investigação do Joio e o Trigo, a empresa já economizou R$ 2,8 bilhões em impostos no país, enquanto a verba orçamentária destinada às políticas de segurança alimentar e nutricional vem sendo drasticamente reduzida ao longo dos últimos cinco anos. O fato é curioso, uma vez que a alimentação é um direito constitucional garantido pelo Estado de forma regular e permanente, e as doações têm caráter ocasional e voluntário. Logo, as grandes campanhas de doações de alimentos não devem ser vistas como a única ferramenta de combate ao cenário de insegurança alimentar e nutricional.

A caminhada percorrida pelo Brasil rumo à saída do Mapa da Fome, entre 2003 e 2014, foi resultado de políticas multidisciplinares e bem articuladas, a partir de uma perspectiva ampliada do problema. Ao enxergar e entender a fome como uma questão social, se investiu em medidas voltadas para o aumento da renda das famílias e no fortalecimento da agricultura familiar, além da criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), sendo composto também pelos Conselhos de Segurança Alimentar (Consea), em níveis local e federal, representando uma espécie de expressão viva da democracia.

O Relatório de Insegurança Alimentar da Agência das Nações Unidas para Alimentação (FAO), de 2014, que traz o Brasil como um exemplo a ser seguido no combate à fome, destaca a implementação de políticas que não se limitem somente à alimentação, mas que possuam impacto direto na condição de vida das famílias, tais como o aumento da escolaridade materna, a expansão da cobertura de atendimento da atenção básica e condições de saneamento. A fome é uma escolha política dos governantes. O que se vê na atualidade é o crescimento do poder das transnacionais de alimentos, enquanto a soberania alimentar da sociedade é minada, já que muitas famílias não possuem a liberdade e o poder de escolher o que chega à mesa. O Brasil já enfrentou a fome com o fortalecimento de políticas transversais, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos, sem a necessidade de se ver refém de soluções que atuem na superfície do problema, sugeridas pelo setor privado.

Os resultados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE) 2017-2018 mostram que a maior parte dos brasileiros ainda preza por uma alimentação baseada em alimentos in natura, como preconiza o Guia Alimentar para a População Brasileira. Além disso, o país possui uma infinidade de conhecimentos relacionados ao uso da terra e à produção de alimentos que precisam ser valorizados e incentivados. Os pequenos produtores encontram dificuldade de escoar sua produção e pouco incentivo para prosseguir produzindo alimentos.

No manifesto Enfrentar a Fome com a Força das Nossa Lutas, diversas organizações mostram que não se pode ter ilusões com falsas soluções. Culturas, saberes e trajetórias trazem possibilidades realizáveis de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis e de políticas públicas que garantam direitos, devendo a alimentação ser um destes. “É preciso que nos somemos aos povos das terras, águas e florestas, unidos em solidariedade e comunhão por direitos, democracia, soberania e segurança alimentar e nutricional”.

 


 

TikTok: onde tudo #pod

Victoria Rabetim e Mariana Pinho

Os cigarros eletrônicos, chamados pelos seus consumidores de vape, pod, pod descartável e outros apelidos, são diferentes aparelhos eletrônicos que funcionam com diversos sistemas e que servem para a administração da nicotina aos seus usuários. Essa substância causa prazer e bem estar por sua atuação no cérebro e, por isso, é a responsável pela dependência química. Isso significa que seus consumidores, ao longo de sua vida, sentirão a necessidade de consumir doses maiores para alcançar as mesmas sensações da fase ainda experimental, e quando ficarem sem ela, sentirão sintomas desagradáveis, conhecidos como abstinência. Isso é o que acontece com dependentes de nicotina, tanto os fumantes quanto os vapers.

Não devemos menosprezar os efeitos da nicotina no corpo humano, como fazem as empresas desses produtos. Além da dependência, a substância está associada ao desenvolvimento de distúrbios cardiovasculares e pulmonares e tem relação com a carcinogênese – acelera o processo  de desenvolvimento do câncer. Estudos mostram que os usuários têm um nível de dependência mais elevado do que em fumantes de cigarros convencionais. Isso acontece porque a nicotina desses aparelhos é modificada. O usuário absorve nos pulmões facilmente quantidades bem maiores.

Estratégias de promoção desses produtos, até mesmo durante a pandemia, têm sido registradas por organizações da sociedade civil e pesquisadores no Brasil, Estados Unidos  e outros países da região das Américas. Um artigo publicado  em janeiro de 2021, em um website  focado em notícias sobre tecnologia, bem como perfis de empresas, produtos e sites, mostra usuários americanos do TikTok fazendo publicidade e comercializando esses produtos. O texto revela, ainda, a tática de fazer remessas postais para crianças e adolescentes em pacotes à “prova dos pais”, ou seja, a reportagem flagrou que os vapes eram enviados disfarçadamente entre balas e doces ou dentro de pantufas.      


Nos Estados Unidos, esses produtos entraram no mercado sem qualquer regulamentação e, por isso, se tornaram uma febre especialmente entre adolescentes. Em 2018, o uso de cigarros eletrônicos entre estudantes do ensino médio aumentou 78% nesse país. Entretanto, enquanto fechávamos este MonitorACT, tivemos a notícia que a FDA, agência americana reguladora de drogas, proibiu a venda de cigarros eletrônicos  das fabricantes JD Nova Group LLC, Great American Vapes e VaporSalon, porque “não foram apresentadas evidências de que seus produtos teriam benefício suficiente para superar a ameaça à saúde pública representada pelos níveis alarmantes e bem documentados de uso de tais produtos pelos jovens”.

Estudantes de medicina no México realizaram pesquisa sobre a plataforma  TikTok e encontraram muita publicidade, ofertas e descontos especiais, e promoção feita por influenciadores digitais e figuras notáveis no país.

 

Aqui no Brasil, mesmo tendo sua comercialização, propaganda e importação proibidas pela Anvisa, aproximadamente 700 mil brasileiros entre 15 e 24 anos consomem dispositivos eletrônicos para fumar (DEF). Assim, um rápido scrolling no TikTok com as palavras pod, vape ou vapebr, mostra um cenário muito preocupante e semelhante ao dos Estados Unidos e do México. Isto reforça que a estratégia de promover esses produtos é global.

A lógica do TikTok é diferente de outras redes sociais. Por lá, não importa quantos seguidores você tem, e sim a “história” que você conta na plataforma. O conteúdo não é limitado à rede de seguidores do perfil, são vários elementos que contam para que o app entregue o conteúdo para mais pessoas, um deles é o conteúdo ser alegre. Isso é possível graças ao algoritmo muito “refinado” da rede, que entende os interesses do usuário com muitos detalhes e compartilha o que é relevante para ele. Metade dos usuários da rede afirmam usar a plataforma para se divertir e levantar o ânimo e dois terços dos usuários criam conteúdo dentro do TikTok.

Quando falamos sobre consumo, segundo o próprio TikTok for Business, 66% dos usuários concordam que a plataforma os ajudou a decidir o que comprar, 67% foram influenciados a fazer compras mesmo quando não tinham esse objetivo e 74% disseram que a plataforma os ajuda a ter ideias sobre marcas e produtos nos quais nunca haviam pensado antes. São 3,5 bilhões de #TikTokReviews, ou seja, avaliações de produtos do ponto de vista de seus usuários. Mais de 50% do público compartilha avaliações de produtos no TikTok e fora dele.

Além disso, o TikTok é a rede social onde o usuário fica por mais tempo conectado: 6,16 min por sessão, quase o dobro do tempo do segundo colocado, o Facebook com 3,28 min por sessão. A média de uso do aplicativo é de 64 minutos diários.

A comunidade do TikTok é muito ativa e engajada e conta com mais de 80 milhões de usuários ativos por mês, 186 bilhões de visualizações de vídeos por mês e mais de dois bilhões de downloads em todo o mundo. Com relação à faixa etária do público, 60% têm idades entre 18 e 34 anos, sendo 32% entre 18 e 24 anos e 28% entre 25 e 34 anos. Cerca de um em cada quatro usuários têm 17 anos ou menos. A maior parte do público é do sexo feminino: 65%.

Uma rápida busca por diferentes hashtags associadas aos DEF escancaram o alcance da promoção desses produtos no TikTok.  Vídeos com #vape já tiveram mais de 5,2 bilhões de visualizações, #vapetricks – que são os truques com o vapor produzido pelos vapers – tem 1,5 bilhão e #vapes alcançou 197 milhões. Esses números referem-se a visualizações no mundo. Ao buscar pela hashtag pod descartável, como tentativa de filtrar vídeos brasileiros, aparecem números entre 2,2 milhões (#podsdescartavel) e 9,9 milhões de visualizações (#poddescartavel). Para #cigarroeletronico há 14,8 milhões.

Vale destacar que nas diretrizes da empresa está expresso que não se permite “a apresentação, promoção ou comércio de drogas ou outras substâncias controladas. A negociação de produtos de tabaco e álcool também é proibida na plataforma. (...) Não poste, envie, stream ou compartilhe: Conteúdo que ofereça a compra, venda, negociação ou solicitação de drogas ou outras substâncias controladas, álcool ou produtos de tabaco (incluindo produtos de vaping).”

Mesmo que se conheça qual seja o público na plataforma, é espantoso que o jovem não apenas é o alvo do marketing desses produtos, mas eles próprios estão promovendo e comercializado os pods. O número de visualizações de conteúdo com hashtags relacionadas à palavra vape é avassalador. Além disso, despertam interesses de menores de idade que manifestam curiosidade pelos produtos e interesse em adquiri-los, que podem receber os vapes junto de balas e se fidelizarem com múltiplas compras.

 

 

A ACT lançou, em fevereiro deste ano, Dependência à Pronta Entrega, relatório sobre a venda de produtos de tabaco em aplicativos de delivery e o encaminhou para as autoridades responsáveis por denunciar e autuar essas irregularidades. A propaganda de qualquer produto de tabaco na internet é contra a lei federal 9294/1996 e resoluções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. É também uma afronta ao tratado internacional, a Convenção Quadro da Organização Mundial da Saúde para Controle do Tabaco, do qual o Brasil é signatário ao lado de mais outros 180 países e União Europeia.

Esses achados reforçam o que já está consagrado pelas evidências e revelado nos documentos secretos da indústria do tabaco. As companhias transnacionais que vendem produtos com nicotina têm um alvo muito específico: os jovens. Eles compreendem o potencial cliente das empresas que substituirão os fumantes que abandonam o tabagismo ou que morrem precocemente em decorrência de fumar. As plataformas e redes sociais devem ser co-responsabilizadas por atos que infrinjam a legislação nacional. 

 


 

Quando o agronegócio encontra a escola

Priscila Diniz

 

 

Dados recentes divulgados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento mostram que o agronegócio brasileiro nunca cresceu tanto e deverá atingir o maior faturamento de sua história ainda este ano, cerca de 10% maior do que em 2020. Surgem, então, entusiastas do setor comemorando o faturamento que quase triplicou nas últimas duas décadas, apontando que o agronegócio segue rumo ao primeiro trilhão. A defesa  do setor também usa dados da Embrapa, que apontou que o agro brasileiro alimentaria 800 milhões de pessoas. A metodologia utilizada, entretanto, não considerou a complexidade do funcionamento do sistema alimentar mundial.

Se deste lado tudo é sol e terras cultivadas, o lado sombrio chega por outra pesquisa, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, que mostra que 56% da população brasileira está implicada em algum grau de insegurança alimentar, e aproximadamente 19 milhões de brasileiros estão, realmente, passando fome. O eufemismo em relação a passar fome fica mais ainda claro quando aparecem reportagens mostrando absurdos, como aumento das vendas de macarrão instantâneo, produto ultraprocessado, e gente comprando ossos e restos de carne para sopa, como foi exposto recentemente em reportagens.

As afirmações de que o Brasil alimenta o mundo é muito estratégica ao agronegócio e costumam aparecer vinculadas à sua grandiosa contribuição nas exportações e à responsabilização pelo crescimento do PIB. Também  é possível notar a insistência na ideia de que a intensificação do uso de tecnologias no campo tornará a produção cada vez mais sustentável e ecológica e que o setor gera empregos.

Estes argumentos tiram o foco dos privilégios tributários do qual o setor é beneficiário e das acusações de conflitos e extermínio de povos originários e comunidades tradicionais, intensificação da degradação do meio-ambiente e a relação direta com aquecimento global.  

À medida que as críticas vão se acumulando, as empresas que compõem o setor tentam melhorar sua imagem e ganhar a opinião pública desde cedo. Assim, acontece a entrada do agronegócio nas escolas públicas brasileiras.

As investidas começaram no final da década de 1990 e no início dos anos 2000, quando a imagem do agronegócio foi fortemente desgastada pela vinculação com o trabalho escravo e, principalmente, pelo massacre de Eldorado dos Carajás. Numa clara tentativa de dar uma resposta ideológica à disputa desta narrativa se iniciaram programas para divulgar o agro nas escolas de forma diversa do que as notícias mostravam. Hoje já é possível identificar ao menos 14 programas distintos.

A formuladora do programa inaugural foi a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), que iniciou o Programa Educacional Agronegócio nas Escolas, realizando ações em milhares de escolas nas redes municipais do estado de São Paulo. O Programa fazia com que estes alunos tivessem contato com uma história diferente sobre o agro e, a partir daí, repercutissem uma imagem de progresso para a sociedade, especialmente em cidades interioranas com número de habitantes reduzido. A proposta nunca foi melhorar a escola ou a educação em si mas, sob um verniz colaborativo, difundir o que intelectuais da educação chamam de pedagogia da hegemonia, a conquista da adesão do conjunto primeiro da sua classe e se possível de toda a sociedade.

Sobre esses programas, destacamos aqui dois principais movimentos, mas muitos outros compõem o quadro. Começando pelo mais recente, chamado de “De Olho no Material Escolar”, que começa por volta de outubro de 2020, organizado em mais ou menos uma dezena de estados do Brasil, aglutinando por volta de dezenas de pessoas em seu núcleo político, que atuam divididas em comissões de trabalho, algumas de atuação no nível local e outras, em âmbito nacional. Estas iniciativas buscam criar ou incentivar movimentos de observação dos materiais didáticos, reunindo pessoas ligadas ao agronegócio insatisfeitas com a imagem apresentada nas escolas. A proposta então é, de forma ordenada, receber esses materiais, fazer reclamações e denúncias de professores.

Os materiais recebidos são bastante distintos entre si, o que mostra uma grande capilaridade e capacidade de monitorar conteúdos em distintas cidades, regiões e estados do Brasil. O catálogo passa por uma categorização de temas e editoras didáticas, que sequencialmente são pressionadas por meio de cartas solicitando a revisão ou recebendo cartas de repúdio.

É possível identificar programas como Vivenciar a Prática e Construir Saberes e Agrinho, que consistem em convidar professores e alunos a visitarem unidades produtivas agropecuárias, agroindustriais ou industriais relacionadas ao agronegócio e convencê-los de que o que se mostra nos livros não é a totalidade dos fatos ou está obsoleto.

Já na esfera nacional, onde está o maior fôlego da iniciativa pela sua abrangência, encontramos as articulações com escolas superiores de ensino, como a ESALQ, que formaliza a estratégia de que, enquanto não se mudam os conteúdos a contento, se construa uma biblioteca virtual para hospedar os conteúdos de contestação que possam ser usados para serem ministrados provisoriamente. Também há uma articulação por meio do Instituto Pensar a Agropecuária (IPA) e a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) junto ao Ministério da Agricultura, para garantir que todos estejam bem-informados neste trio, há muito tempo bastante coeso e articulado no que se refere a um canal permanente de comunicação entre si. Já se identificou, inclusive, uma atuação via Conselho Superior do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) 

Tais movimentações são público-privadas e exercidas por meio de uma grande variedade de entidades representativas que desaguam na influência e pressão diretas sobre cada uma das editoras cujos materiais didáticos causam desgostos aos donos do agronegócio. Basta uma mãe e/ou pai indignado cujo filho ou a filha está utilizando o material em sua escola, acompanhado de um técnico da ESALQ, para apoiar na sustentação técnica da argumentação, e parte-se para a incidência sobre as editoras didáticas. O que fica no alvo, também, é o Programa Nacional do Livro Didático, como mostrou uma análise da Associação dos Geógrafos Brasileiros. Com as redes de denúncia que aparentam inofensivas, pulverizadas e desorganizadas, acaba vindo uma imposição aos professores: aderir ao agronegócio ou ser denunciado por ele.

O segundo movimento mais proeminente identificado é o Todos A Uma Só Voz. Liderado por indústrias, principalmente aquelas que, apesar de terem voz prevalecente no campo do agronegócio, estão mais sujeitas a riscos estratégicos diante da destruição ambiental, e cada vez mais, em rota de colisão com algumas outras representações no campo que publicamente defendem a atual política ambiental do governo. Dentre elas, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA), que lidera a proposta, mas também outras organizações que não possuem posição pronunciada de crítica à política ambiental do governo e que se sentem prejudicadas por algumas das ações. É um movimento amplo, que também apoia e se conecta ao De Olho no Material Escolar, mas que busca consolidar um braço na educação ao investir sua ofensiva na opinião pública no ambiente escolar.

Em ambos os casos, são movimentos muito capilarizados, o que lhes dá força e capacidade de influência, tanto pelos agentes que fazem pressão localmente, mas também pelos que recolhem materiais e passam para uma base organizada nacionalmente para realizar a sínteses para o processo nacional. A partir daí, acontecem reuniões entre agentes privados, a portas fechadas, com o Ministério da Educação (MEC), para discutir também sobre a formação de professores, num profundo processo de interferência na educação brasileira.

Por meio de uma abordagem atrativa, interativa e didática e na brecha da precarização e sucateamento da escola pública, sob a justificativa dos índices ruins atuais da educação, acontece a captura permanente dos currículos e dos projetos político-pedagógicos, no qual fundações e institutos de interesse privado assumem a formação dos educadores públicos nos municípios, principalmente os mais interioranos onde se encontram atores dos movimentos sociais camponeses. 

As táticas empregadas por esses movimentos são bem parecidas com os do projeto de lei 7180/2014, da Escola Sem Partido, que clama por “garantir o pluralismo de ideias no ensino e evitar que docentes prejudiquem os estudantes em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas”.  Para especialistas em educação, no entanto, há facetas dissimuladas que acompanham esse discurso, revelendo seu teor de censura e culpabilização dos docentes.

 


 

Portas giratórias e modelos de governança multipartite: um olhar crítico

Laura Cury e Paula Johns

 

Em agosto do ano passado, o então diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Roberto Azevedo, anunciou que iria assumir a vice-presidência da gigante dos alimentos PepsiCo, um ano antes do fim previsto para seu mandato em uma das mais importantes organizações multilaterais. Em um comunicado oficial, Azevedo disse que estava encantado por se juntar à PepsiCo, chamando a fabricante de lanches e bebidas de “um líder global na promoção de colaborações e investimentos significativos com foco na melhoria de nossa sociedade e planeta”, de acordo com a cobertura da imprensa.

A função, então recém-criada para Azevedo na PepsiCo, reúne políticas públicas, assuntos governamentais e de comunicação sob o mesmo guarda-chuva, para solidificar o engajamento externo da empresa com diversos governos, organizações internacionais e partes interessadas não governamentais.

Não é incomum que políticos, reguladores de governo ou chefes de grandes organizações internacionais deixem seus cargos em organismos internacionais para liderar uma grande empresa. Mais recentemente, o ex-chefe da Food and Drug Administration (FDA), Scott Gottlieb, também assumiu um cargo no conselho da Pfizer. Esses são exemplos do que é comumente chamado de porta giratória, ou revolving door, em inglês, termo usado quando uma pessoa que atuou dentro do governo vai trabalhar na indústria, ou o contrário. Já comentamos sobre isso em artigo de 2019.

 

Fonte: https://review.chicagobooth.edu/public-policy/2017/article/should-we-stop-revolving-door 

 

Por trás da porta giratória, encontramos a ideia de captura política e regulatória. Essa prática resulta em uma influência assimétrica de empresas privadas em relação a outros atores sociais. Na captura política, as decisões sobre a elaboração e modificação das leis, que cabem ao Poder Legislativo, a interpretação e aplicação das leis, competência do Judiciário, e o desenho e execução das políticas públicas, tarefa do Executivo, são influenciadas para que seja favorecido o lucro de atores econômicos específicos.

Notamos esse fenômeno ocorrendo no setor de saúde com uma frequência maior do que deveria e pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com executivos, deixa claro a prática. Esses executivos administraram a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e saíram para trabalhar em empresas que anteriormente regulavam, e que movimentaram mais de R$ 270 bilhões em 2019.

No âmbito internacional também ocorre essa captura corporativa,  demonstrando a ausência de mecanismos regulatórios globais eficazes para criar condições de concorrência equitativa entre Estados, de forma que interesses de empresas são colocados à frente do interesse público.

Grandes corporações apoiam diversas organizações internacionais, como a Organizaçõa Mundial do Comércio, e até mesmo o funcionamento do sistema da Organização das Nações Unidas (ONU). Conforme atenta a organização Friends of the Earth Internacional, “grandes corporações ganham papel consultivo privilegiado, funcionários das Nações Unidas vão e voltam do setor privado, e suas agências estão cada vez mais dependentes financeiramente do setor privado. E uma causa de preocupação é o surgimento de uma ideologia entre algumas agências da ONU e seus funcionários segundo a qual o que é bom para as empresas é bom para a sociedade.”

Não é incomum que multinacionais, muitas delas com um histórico de violações dos direitos humanos, incluindo à alimentação adequada e saudável, à saúde e a um meio ambiente protegido e seguro, patrocinem alguns dos principais eventos da ONU, ou apareçam como parceiras em projetos de suas diversas agências. A ideia de um modelo de governança multipartite, o chamado multistakeholder governance model, em inglês, é recorrente nas negociações internacionais. Essa estrutura de governança reúne as partes interessadas em um determinado tema, incluindo empresas, para participar no diálogo, na tomada de decisão e na implementação de soluções para problemas comuns, o que significa chamar as grandes empresas para a mesa de negociação para solucionar problemas de interesse público.

 

Fonte:http://www.vigencia.org/wp-content/uploads/2016/08/Vige%CC%82ncia_Cata%CC%81logo_FINAL-1.pdf

 

Outro exemplo de captura política ocorre no âmbito da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, encontro criado para discutir questões, apresentar abordagens científicas e lançar compromissos sobre como os sistemas alimentares podem ser um caminho para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) relacionados à fome, desigualdade, agricultura, consumo e clima até 2030. É observada a tendência de grandes corporações cooptarem espaços multilaterais para abordar nossos frágeis sistemas alimentares. Para a realização da Cúpula, foi estabelecido um acordo de parceria estratégica entre as Nações Unidas e o Fórum Econômico Mundial, que concedeu às empresas transnacionais acesso preferencial ao sistema ONU, o que se demonstra, no mínimo, incoerente. O líder global em desenvolvimento sustentável e professor de economia da Universidade de Colúmbia, Jeffrey Sachs, chamou a atenção para o fato em sua apresentação numa das reuniões preparatórias, dizendo que temos um sistema alimentar global, mas precisamos de um diferente: “Não podemos entregar o sistema alimentar global ao setor privado. Já fizemos isso há cerca de 100 anos (...). Estamos em um mundo realmente difícil. O setor privado não vai resolver esse problema. Lamento dizer isso a todos os líderes do setor privado aqui. A chave para o setor privado é simplesmente esta: comportar-se, pagar seus impostos e seguir as regras. Isso é o que as empresas devem fazer.”

A Convenção-Quadro da Organização Mundial da Saúde para Controle do Tabaco (CQCT/OMS), primeiro tratado internacional de saúde pública, é um modelo que pode ser estendido a outras áreas. Seu artigo 5.3 é claro quanto à transparência e participação social nas decisões relativas a políticas públicas, além de impor limites à atuação das grandes corporações em espaços decisórios relativos à sua própria atividade.

A campanha Só Acredito Vendo, que reúne organizações de diversas áreas, toca neste tema ao denunciar isenções fiscais que chegam a R$ 300 bilhões anuais de empresas brasileiras e cobrar informações sobre para onde vai esse dinheiro. Ela é um exemplo de que a sociedade civil e a academia têm o papel de denunciar essa captura da pauta e exigir transparência, pois só assim poderemos blindar o que é público da cooptação por aquilo que é privado.  

 


 

Revisão e edição: Anna Monteiro

Arte: Ronieri Gomes

Equipe de monitoramento

Anna Monteiro

Bruna Hassan

Camila Maranha

Denise Simões

Fabiana Fregona

Laura Cury

Mariana Pinho

Marília Albiero

Victoria Rabetim

Vitória Moraes

Colaboraram nesta edição: Priscila Diniz e Paula Johns

 




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