Liberação do cigarro eletrônico interessa apenas à indústria

12.11.23


O Globo

Cigarro eletrônico, cuja venda é proibida no Brasil pela Anvisa, volta ao centro do debate
Cigarro eletrônico, cuja venda é proibida no Brasil pela Anvisa, volta ao centro do debate — Foto: Jeenah Moon/The New York Times

Entidades da área médica têm manifestado preocupação crescente com o Projeto de Lei (PL) que propõe liberar os cigarros eletrônicos, também conhecidos como vapes.Venda, importação e propaganda dos dispositivos estão proibidas pela Anvisa desde 2009, devido à inexistência de dados que comprovem sua eficácia e sua segurança. De autoria da senadora Soraya Thronicke (Pode-MS), o PL dos Vapes tramita na Comissão de Assuntos Econômicos.

O principal argumento da indústria do fumo, maior defensora do projeto, é que, apesar da proibição, vapes são vendidos livremente, sem regulamentação. De acordo com ela, isso também impõe riscos à saúde, pois os usuários não sabem o que consomem, e os produtos ilegais têm concentrações mais altas de nicotina. Os defensores também alegam que os eletrônicos contribuiriam para a redução do consumo de cigarros tradicionais. Tais argumentos são defendidos publicamente em artigos, como aqui no GLOBO. É verdade que, mesmo com a proibição, os vapes têm ganhado espaço, especialmente entre os jovens. No ano passado, 2,2 milhões de adultos usavam cigarros eletrônicos no Brasil, de acordo com levantamento do Ipec — em 2018, eram menos de 500 mil.

Mas a regulamentação sugerida no PL está repleta de armadilhas. Embora estabeleça condicionantes, como a obrigatoriedade de registro na Anvisa e a apresentação de laudo de avaliação toxicológica, a proposta abre brechas preocupantes. Os fabricantes não estariam obrigados a apontar aditivos e materiais usados na fabricação dos vapes, nem a revelar os riscos do produto na comparação com o cigarro convencional. Isso só seria feito, pelo texto sugerido, quando considerado “relevante para a avaliação”. Ficaria, portanto, a critério dos fabricantes, um despropósito. Para completar, diferentemente do que ocorre com maços de cigarros, os dispositivos não estampariam fotos para alertar sobre seus danos.

 

 

É certo que a proibição pura e simples — sem a devida fiscalização — não tem sido eficaz. Mas o debate deve se nortear, fundamentalmente, pelas implicações médico-sanitárias. Os congressistas não devem se enganar: a defesa dos cigarros eletrônicos não guarda relação com a saúde dos cidadãos, trata-se do interesse da indústria. A lista de malefícios dos vapes é extensa. Um único dispositivo equivale a cerca de 20 cigarros tradicionais, segundo a Associação Médica Brasileira (AMB). O uso dos cigarros eletrônicos aumenta o risco de câncer, além de doenças respiratórias, cardiovasculares e neurológicas. Não se deve ignorar que vapes têm nível mais alto de nicotina, substância que provoca dependência química. Um estudo do Hospital das Clínicas da USP mostrou que, enquanto cigarros convencionais têm um limite de 1 miligrama de nicotina, os eletrônicos chegam a 57 miligramas por mililitro. A AMB classifica o PL dos Vapes como “desserviço aos cidadãos”.

 

 

Permitir a livre circulação desses dispositivos no Brasil criaria, nas palavras de Margareth Dalcolmo, presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e pesquisadora da Fiocruz, “uma nova legião de dependentes de nicotina”, depois de o país ter reduzido para apenas 9% a população de fumantes. Os vapes trazem, de acordo com o pneumologista Paulo Correa, coordenador da Comissão de Tabagismo da SBPT, os mesmos riscos do cigarro convencional — em especial de câncer e doenças cardíacas — e ainda por cima acrescentam outros, como inalação de metais ou uma doença respiratória aguda grave associada a eles, a evali. Em artigo recente no GLOBO, Dalcolmo e Correa ressaltaram que os vapes podem conter quase 2 mil substâncias, a maioria não revelada pela indústria, e que os fabricantes não são transparentes em relação à composição dos produtos. Em estudos, já foram encontrados químicos industriais e até pesticida.

A alegação de que os vapes poderiam substituir os cigarros tradicionais por ser menos danosos não encontra respaldo entre os cientistas, além de ser rechaçada pela OMS. Dados do Escritório Nacional de Estatísticas do Reino Unido — onde cigarros eletrônicos são permitidos e incentivados — mostram que, em apenas um ano, de 2021 para 2022, o uso de vapes aumentou de 11,1% para 15,5% entre jovens de 16 a 24 anos, enquanto o cigarro convencional caiu menos, de 13,2% para 11,6%.

 

 

Todo esse potencial de danos precisa ser levado em conta nas discussões e analisado com lupa. É fundamental que os parlamentares ampliem o debate, envolvendo sobretudo as instituições que atuam na área da saúde e testemunham cotidianamente os efeitos deletérios dos cigarros, sejam eles tradicionais ou eletrônicos. Deve-se ter em mente que, nas últimas décadas, o Brasil obteve um avanço extraordinário na restrição ao tabagismo, transformando-se em referência internacional. Criar uma nova geração de dependentes da nicotina seria um enorme e lamentável retrocesso.

Por fim, é chocante a hipocrisia da indústria do fumo. Almejar lucro é o objetivo de toda empresa, mas travestir esse interesse de pretensas boas intenções não parece correto. Não soa convincente que uma indústria que por décadas omitiu os efeitos perversos dos cigarros para preservar seus lucros esteja interessada agora em reduzir a dependência à nicotina oferecendo produtos menos nocivos. Como bem resumiu o médico Drauzio Varella no jornal Folha de S.Paulo: “Uma indústria que acumulou lucros astronômicos com a venda de cigarros para dependentes de nicotina fabrica um dispositivo para inalar nicotina com a finalidade de reduzir o número de fumantes. Haja ingenuidade para acreditar nessa gente”.

 

https://oglobo.globo.com/opiniao/editorial/coluna/2023/11/liberacao-do-cigarro-eletronico-interessa-apenas-a-industria.ghtml




VOLTAR



Campanhas



Faça parte

REDE PROMOÇÃO DA SAÚDE

Um dos objetivos da ACT é consolidar uma rede formada por representantes da sociedade civil interessados em políticas públicas de promoção da saúde a fim de multiplicar a causa.


CADASTRE-SE