DEFs: interferência da indústria do tabaco
O que a indústria do tabaco pretende?
Fabricantes de cigarros têm pressionado a ANVISA para liberar o comércio dos DEFs no Brasil, especialmente os cigarros eletrônicos e os produtos de tabaco aquecido, sob a alegação de que são produtos de risco reduzido e destinados a adultos fumantes que não querem ou não conseguem parar de fumar.
As alegações da indústria do tabaco são verdadeiras?
Não. As evidências científicas independentes e sem conflito de interesse não são suficientes para endossar a alegação das empresas fabricantes de produtos de tabaco de que cigarros eletrônicos e tabaco aquecido são potencialmente produtos de risco reduzido.
As empresas também alegam que esses produtos são destinados a adultos fumantes que não querem ou não conseguem parar de fumar o cigarro tradicional. Contudo, a forma como esses produtos são colocados e promovidos nos mercados dos países em que é permitida a comercialização evidencia outras estratégias de marketing.
São realizadas festas, estandes em feiras de Natal, vendas em lojas exclusivas com layout sofisticado e minimalista, publicidade em mídias sociais, com distribuição gratuita de produtos e uso de influenciadores digitais, venda de produtos com sabores, com forte apelo tecnológico e associados a estilos de vida modernos, patrocínio de acampamentos para crianças, dentre outros, sempre relacionando os produtos com experiências positivas e promovendo-os amplamente para um público abrangente, com destaque para crianças e jovens, como uma alternativa socialmente aceitável aos cigarros tradicionais e como produtos de consumo de luxo atraentes e inofensivos.
Tais fatos prejudicam a percepção dos reais efeitos do uso do produto. Para potencializar isso, a indústria também faz uso de termos como vaping, e-juicy, e-liquid, dentre outros, quando na verdade os DEFs são produtos que causam forte dependência e não são inócuos para a saúde. Assim, todas essas estratégias da indústria representam um alto risco do retorno da aceitação social do tabagismo e a normalização do consumo. Nos países em que eles são comercializados, inclusive, verifica-se um crescente consumo entre adolescentes e jovens. Os DEFs atraem pessoas que não eram previamente tabagistas, além de fumantes que fazem uso simultâneo com o cigarro tradicional. Nos Estados Unidos, há uma epidemia do uso de cigarros eletrônicos, com o consumo entre adolescentes tendo aumentado em mais de 70% em apenas um ano.
Os DEFs são produtos que contêm nicotina e, portanto, o seu consumo consiste em tabagismo, que é considerado uma doença pela Classificação Internacional de Doenças – CID 10. Por isso, a migração do consumo do cigarro tradicional para um dispositivo eletrônico para fumar não configura cessação do tabagismo.
A indústria do tabaco tenta minimizar a percepção dos efeitos da nicotina para a saúde e o fato de que ela é a substância que causa a dependência desses produtos. Entretanto, na verdade o uso de nicotina em qualquer forma não é seguro, causa dependência e pode prejudicar o cérebro do adolescente em desenvolvimento (1).
Os DEFs consistem em uma séria ameaça à saúde pública e são apenas uma forma que as empresas encontraram para se reinventar e vender uma nova geração de produtos fumígenos, derivados ou não de tabaco, para novos consumidores, diante da significativa redução do número de fumantes de cigarros tradicionais.
Em 1989, 34,8% da população brasileira adulta era tabagista, segundo a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição. Em 2016, esse número caiu para 10,2%, e hoje está em 9,3%. Uma eventual permissão da comercialização dos DEFs no país comprometerá o avanço da Política Nacional de Controle do Tabagismo, existente desde o final da década de 1980. Por isso, é fundamental levar em consideração o impacto que os DEFs causam no aumento de experimentação e iniciação ao consumo para não haver retrocessos.
O Brasil ratificou a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) por meio do Decreto 5658/2006, e possui uma legislação de controle do tabaco avançada que é referência internacional, embora ainda possa melhorar, adotando, por exemplo, as embalagens padronizadas e a proibição total da propaganda comercial.
Um dos motivos para o país não ter avançado ainda mais na implementação da CQCT é a interferência da indústria do tabaco, um grande obstáculo para a efetivação das medidas previstas no tratado, como reconhecido no Relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a Epidemia Global do Tabaco de 2019, lançado no Brasil em julho de 2019:
A indústria do tabaco tem uma longa história de oposição sistemática, agressiva, sustentada e com bons recursos às medidas de controle do tabaco, incluindo esforços para subverter as medidas de controle do tabaco que salvam vidas. Isso é feito mediante a implantação de uma ampla variedade de táticas para obstruir, atrasar, enfraquecer ou prejudicar os compromissos políticos e as medidas de controle do tabaco adotadas pelos países nos níveis internacional, regional, nacional e subnacional. Embora algumas estratégias sejam públicas e outras mais secretas (sejam elas dirigidas a governos, público ou mídia), todas têm o objetivo de enfraquecer o controle do tabaco (página 60).
Neste documento, há também o reconhecimento de que o Brasil e a Turquia foram os dois únicos países a adotar integralmente as medidas MPOWER definidas pela Organização Mundial da Saúde para controle do tabaco, que incluem ações de monitoramento, prevenção, tratamento, conscientização, proibição de publicidade e tributação.
Ao proibir a comercialização dos DEFs, o Brasil impediu, então, que a população consumisse um produto com indícios de significativa toxidade, altamente atrativo aos jovens e sem comprovação de que auxilie no tratamento do tabagismo.
(1): Fonte: HHS, E-Cigarette Use Among Youth and Young Adults. A Report of the Surgeon General. Atlanta, GA: U.S. Department of Health and Human Services, Centers for Disease Control and Prevention, National Center for Chronic Disease Prevention and Health Promotion, Office on Smoking and Health, 2016.