Aumento no consumo de ultraprocessados reforça importância do Guia Alimentar para a População Brasileira

03.12.20


UFRGS

Quem ainda não conhecia o Guia Alimentar para a População Brasileira antes da pandemia provavelmente ouviu falar sobre ele neste ano. Publicado em 2014 e considerado o melhor guia nutricional do mundo, o documento foi pauta da mídia nacional depois de o governo tentar mudar seu conteúdo, tendo de recuar, porém, devido à pressão da comunidade científica, de movimentos sociais e de organizações de saúde. Em um ano em que o aumento do consumo de ultraprocessados cresceu, especialistas afirmam ser ainda mais importante que todos os brasileiros conheçam e sigam as orientações da publicação.

Conforme uma pesquisa do Instituto Datafolha publicada no final de outubro, a ingestão de ultraprocessados quase dobrou neste ano justamente na faixa de idade para a qual isso apresenta maior risco: dos 45 aos 55 anos, a mesma etapa etária com maior número de pessoas com sobrepeso e obesas no país. Encomendado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o estudo mostrou que o consumo desse tipo de produto por pessoas com idades nesse intervalo passou de 9% em 2019 para 16% em 2020.

Além disso, o levantamento indicou que alguns ultraprocessados tiveram crescimento de ingestão em todas as faixas etárias da pesquisa (veja o quadro abaixo), que entrevistou brasileiros dos 18 aos 55 anos das diferentes classes econômicas e das cinco regiões do país. Pesquisas científicas vêm apontando há pelo menos 10 anos que esses produtos são os grandes responsáveis pelo aumento da obesidade e da diabetes no país, fatores que tornam a covid-19 mais fatal.

 

Os resultados da pesquisa confirmam as mudanças que a nutricionista da UFRGS Marina Carvalho Berbigier, que trabalha na Unidade Básica de Saúde (UBS) Santa Cecília, passou a ver nos hábitos alimentares de alguns pacientes. Segundo ela, a necessidade de isolamento social contribuiu para que parte das pessoas passassem a optar mais por alimentos com maior validade e estocáveis, entre eles os ultraprocessados.

O fato de a covid-19 ter afetado a saúde mental, aumentando os sentimentos de ansiedade e de insegurança, acabou contribuindo para o crescimento da procura pelos ultraprocessados. Por terem bastante sódio, gordura e açúcar, que chamamos de “hipersabores“, eles dão a sensação de satisfação e são hiperpalatáveis. Por isso, passaram a ser usados como uma bengala para que as pessoas se sintam melhores na pandemia.

Marina Carvalho Berbier

Apesar da contraindicação de pesquisadores e de profissionais de saúde, os ultraprocessados chegaram a ser defendidos neste ano por uma nota técnica do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), encaminhada em setembro para o Ministério da Saúde. No documento, o Mapa solicitou uma revisão do Guia Alimentar para a População Brasileira, que recomenda evitar a ingestão desses produtos (veja o quadro abaixo).

 

Conforme a nota, a orientação do guia para que as pessoas identifiquem os ultraprocessados por meio da contagem do número de ingredientes, frequentemente cinco ou mais, “parece ser algo cômico” e um “ataque sem justificativa à industrialização”. O documento afirma também que a verificação da presença de ingredientes com nomes pouco familiares para a identificação de ultraprocessados é “confusa” e que a “discriminação de alimentos” pelo nível de processamento é uma “incoerência”.

“Os determinantes mais importantes da qualidade da dieta são os tipos específicos de alimentos consumidos, e não o seu nível de processamento”, escreveu o Mapa, acrescentando que o guia “induz a população brasileira a uma limitação da autonomia das escolhas alimentares”.

Pressão social fez ministério recuar

A nota provocou uma onda de repúdio na internet e fez a hashtag #EuApoiooGuiaAlimentar ser massivamente compartilhada pela comunidade acadêmica, pelos movimentos sociais, pelas organizações de saúde e até por famosas, como Rita Lobo, Paola Carosella e Bela Gil. Outra reação contrária foi um manifesto de apoio ao guia, lançado pela Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, assinado por mais de 46 mil pessoas e 352 organizações. Entre as entidades e movimentos apoiadores estão a Associação Brasileira de Nutrição (Asbran), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PenSSAN) e a Slow Food Brasil.

“A nota técnica apresenta um conjunto de argumentos superficiais ao guia em mais uma das recorrentes tentativas de ocultar os impactos negativos que os alimentos ultraprocessados podem gerar na nossa saúde — contrariando um conjunto consistente de evidências científicas produzidas por pesquisadores de instituições amplamente respeitadas não só no Brasil, mas em todo o mundo”, afirma-se no manifesto entregue ainda em setembro ao Ministério da Saúde.

A pressão popular fez o Mapa voltar atrás com o pedido de revisão do guia. Em despacho obtido por Lei de Acesso à Informação pela Revista Época, Paulo Márcio Mendonça Araújo, chefe de gabinete da ministra da pasta, Tereza Cristina, escreveu ao Ministério da Saúde que o gabinete entendia “não serem suficientes os elementos mencionados na nota técnica 42”.

“Incumbiu-me a senhora ministra de restituir o presente processo a essa secretaria, rejeitando o teor da mencionada nota técnica, por não considerá-la suficiente e consistente para fundamentar uma boa discussão sobre o tema”, completou Araújo.

Guia ganhou popularidade

A tentativa do Mapa de excluir a contraindicação do consumo de ultraprocessados do guia acabou tornando a publicação ainda mais conhecida pelos brasileiros. Uma análise das buscas por “Guia Alimentar para a População Brasileira” no Google desde o início deste ano mostra que ele atingiu o pico de popularidade em setembro (veja a série histórica abaixo).

 

Conforme o Google, os termos de pesquisa são classificados em uma escala de 0 a 100, sendo 100 o pico de popularidade — número alcançado pelo guia em setembro. Doutora em Endocrinologia e mestre em Saúde Coletiva, a professora de Nutrição da UFRGS Raquel Canuto afirma que “o tiro saiu pela culatra”, porque pessoas que nem conheciam o guia foram pesquisar sobre ele e passaram a defendê-lo.

“Ele nasceu de uma construção muito coletiva a partir de mais de uma década de evidências sobre os problemas de saúde causados pelos ultraprocessados, o que gerou um estado de tensão na indústria, que quer individualizar as escolhas. As empresas promovem o discurso do ‘come quem quer’, no sentido de se transferir a culpa às pessoas, em posição apoiada na nota técnica”, explica a professora.

Conforme Raquel, as políticas públicas precisam encarar as escolhas alimentares como coletivas por demandarem estrutura para o tratamento de doenças crônicas decorrentes e porque a falta de informações sobre os produtos impede que as pessoas tenham condições sólidas de escolher.

Quando tu tens acesso a ultraprocessados baratos, com embalagens atrativas e sem informação nos rótulos sobre as contraindicações, é óbvio que tu não consegues ter autonomia de escolha.

Raquel Canuto

Docente de Nutrição da UFRGS, Ana Beatriz Almeida de Oliveira conta que uma das alunas do curso mapeou todos os produtos alimentícios com desenhos infantis nas embalagens em três redes de supermercado de Porto Alegre e constatou que apenas dois não eram ultraprocessados: um suco de uva e um saco de maçãs. “É preciso ler o rótulo e evitar produtos com palavras desconhecidas. O açúcar, por exemplo, aparece na maioria das vezes como glicose, sacarose, frutose ou maltose. Tudo é açúcar, mas poucas pessoas sabem disso”, alerta a docente, reforçando a orientação do Guia Alimentar para a População Brasileira.

Com grandes quantidades de sal, açúcar e gordura, ultraprocessados são apontados por pesquisas científicas há mais de 10 anos como grandes responsáveis pelo aumento da obesidade e da diabetes no país (Foto: Flávio Dutra/JU)
Cuidado com os ultraprocessados “saudáveis”

Professora do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR) e do curso de Nutrição da UFRGS, Eliziane Nicolodi Francescato Ruiz conta que o guia fez a população prestar mais atenção aos rótulos, e, para não perder mercado, a indústria passou a produzir ultraprocessados com apelo “saudável” por meio da adição de vitaminas ou minerais. “Eles colocam na embalagem que o alimento é ‘rico em ferro’, por exemplo, mas quando tu vais ler os ingredientes vê que segue tendo muita gordura, açúcar, sal e aditivos”, explica a docente.

Embora profissionais e organizações de saúde defendessem a inclusão, nos rótulos, de triângulos pretos de alerta à população sobre o alto teor de sal, açúcar e gordura nos produtos alimentícios, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Ansiva) adotou uma medida mais branda. Em outubro, após seis anos de pressão social, o órgão aprovou a obrigatoriedade de os rótulos conterem uma lupa explicativa desses ingredientes. A norma entrará em vigor em 2022.

Veja o rótulo defendido por profissionais e organizações de Saúde:

 

Conheça o rótulo aprovado pela Anvisa:

Rótulo tipo lupa aprovado pela Anvisa é menos legível do que a versão em triângulo recomendada por profissionais e organizações de saúde (Imagem: UFPR/Divulgação Idec)

Em nota, o Idec reprovou a escolha da Anvisa. Conforme o instituto, o modelo de lupa traz os alertas em letras menores e ocupam menos espaço nas embalagens do que a proposta do triângulo.

Além da questão dos rótulos, Raquel afirma que a atual estrutura legislativa federal tem impedido a evolução de outras pautas consideradas importantes para a soberania alimentar do país. “O lobby da indústria de ultraprocessados no Congresso é apoiado pela bancada do agro, que é muito forte, o que dificulta o avanço de agendas como a proibição da propaganda e a maior taxação desses produtos”, completa a docente.

https://www.ufrgs.br/jornal/aumento-no-consumo-de-ultraprocessados-reforca-importancia-do-guia-alimentar-para-a-populacao-brasileira/




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