Boletim de monitoramento - Dezembro 2020

09.12.20


ACT Promoção da Saúde

Editorial

O Natal é uma das datas mais esperadas do ano, por ser considerado um momento de união, paz, amor, solidariedade e renovação de esperanças.  Para as empresas, é necessário emocionar, humanizar a relação com o público consumidor, fortalecer os valores de responsabilidade social e filantropia para alcançar corações e mentes e vender mais. E de tudo. Um dos exemplos mais marcantes do uso desses elementos é o das campanhas de final do ano da Coca Cola, tão tradicionais quanto peru e rabanada, e é o que abordamos no artigo Então é Natal.

 

É preciso um olhar crítico para além da beleza das imagens e da capacidade técnica de seus filmes publicitários, e não deixar de perceber que essas companhias estão vendendo produtos que causam sérias externalidades negativas, e que a conta a pagar é alta demais para toda a sociedade.  

 

Dois índices sobre conflito de interesse e a saúde pública servem como bons guias quando esse olhar crítico se torna embaçado diante das ações de marketing. Um deles, preparado pela Global Health Advocacy Incubator, apresenta como as grandes empresas da indústria de alimentos e bebidas bloquearam direta e indiretamente as políticas de alimentação saudável e deixaram os consumidores já vulneráveis em situação de risco ainda maior durante a epidemia de Covid-19. O outro, preparado pela Iniciativa Stop, analisa as ações de empresas de cigarros em 57 países. O Brasil subiu no ranking, o que acende um sinal de alerta e explica a necessidade de monitoramento constante.

 

O artigo Conflitos de interesses em eventos e na pesquisa envolvendo indústrias de produtos nocivos expõe o patrocínio a congressos e estudos da área da saúde e a procura das empresas de produtos nocivos, como a de ultraprocessados e de tabaco, por parcerias com profissionais, universidades e grupos de pesquisa, buscando legitimidade e credibilidade. 

 

Tentar transformar produtos que fazem mal à saúde e ao meio ambiente, contribuem para uma carga de doenças e causam um impacto ao sistema público em marcas do desejo, sustentáveis, ecologicamente corretas e saudáveis é um desafio e tanto, mas no marketing dessas empresas isso já acontece. Em Construindo marcas e produtos mais saudáveis, as autoras mostram que, frente a um forte desvio, como a pandemia do coronavírus pode ser encarada, algumas empresas aproveitaram para reconstruir sua imagem de forma melhor e testar a lealdade de clientes a seus produtos, usando afetividade na publicidade de seus produtos. Em muitos casos, usam também uma grande dose de desinformação. O importante, no cálculo final, é aumentar a fatia de mercado e, assim, garantir o negócio e o lucro para seus acionistas.

 

Nesta edição, convidamos Ricardo Brandão de Oliveira, especialista em atividade física e estudioso da mobilidade urbana para abordar um fator de risco tão grave quanto os demais, mas que geralmente é pouco discutido. É o sedentarismo, e seu vetor principal, a indústria automobilística e as associações do setor, e a capacidade extrema de pressão contra políticas públicas que possam tornar menor a dependência dos carros e incentivar transportes mais ativos.  

 

Em nome da equipe ACT, desejo boas festas e que 2021 seja um ano cheio de inovações de verdade e esperanças. 

 

Anna Monteiro

Diretora de Comunicação

ACT Promoção da Saúde

 


Então é natal

Laura Cury e Victória Rabetim

 

Novas formas de sociabilidade acabaram emergindo com a pandemia da Covid-19, o que inclui as celebrações de natal. Com a segunda onda apontando forte, sendo que a primeira nunca sequer acabou, e apesar do otimismo em relação a vacinas, a previsão é de uma quantidade menor de pessoas reunidas à mesa e várias pequenas ceias, o que pode ser uma oportunidade interessante para as indústrias de alimentos e bebidas.   

A tradicional caravana da Coca Cola, o desfile de caminhões enfeitados com luzes e figuras natalinas pelas ruas de cidades, está acontecendo com modificações, já que para evitar aglomerações, o roteiro e as datas da caravana não serão divulgados previamente, como em anos anteriores. A intenção é que o público assista ao espetáculo pelas janela das casas e dos apartamentos. Os veículos serão iluminados como de costume, mas não haverá a participação do Papai Noel e demais personagens. Em outros países, como a Inglaterra, por exemplo, sequer haverá caravana, devido ao lockdown.

A grande atração, contudo, será a nova campanha natalina global empresa, chamada A Carta. Com direção de Taika Waititi, indicado ao Oscar 2020 de Melhor Filme e vencedor da categoria Melhor Roteiro, com o longa Jojo Rabbit, o vídeo celebra os 100 anos de Natal do refrigerante, que será veiculado em mais de 90 países, dentre eles o Brasil. A história retrata o amor de um pai por sua filha e suas aventuras para realizar seu pedido. Vale lembrar que Papai Noel é associado à Coca Cola desde 1920, quando já ilustrava campanhas da marca. Sua figura atual, o velho, gorducho  e bonachão, com roupas vermelhas, se deve a uma ilustração do artista Haddon Sundblom, de 1931. E daí em diante, foi impossível imaginar Papai Noel de outra forma. E dissociar a marca da figura tão querida. Que até já recomendou cigarros, mas aí é outra história.

A trama da nova campanha da Coca, A Carta, é a seguinte: a menina entrega ao pai uma carta ao Papai Noel, mas ele esquece de postá-la e acaba embarcando em uma verdadeira saga, vencendo diversos obstáculos, ao Polo Norte. Mas, ao chegar lá, ele não encontra o Papai Noel em casa, e sim dirigindo o tradicional caminhão da Coca-Cola. O Papai Noel concorda em dar ao homem uma carona para casa, atendendo ao desejo expresso na carta da garota: passar o natal com seu pai.

Com a mensagem “neste Natal, o melhor presente é estarmos juntos”, a campanha sugere que a verdadeira magia desta época do ano é a capacidade de conectar as pessoas.  A Coca já havia utilizado um outdoor em Times Square, em março deste ano, com um espaçamento maior entre as letras do logo e estampado “ficarmos separados é a melhor maneira de estarmos juntos” e que o maior presente que podemos dar uns aos outros é nossa união. 

Segundo Marina Rocha, diretora de marketing de Coca-Cola no Brasil, “neste ano tão difícil para todos nós, vamos trazer uma mensagem de esperança e lembrar a todos o real valor do Natal: a nossa nova campanha vem lembrar a cada um o valor de estarmos presentes, de estarmos perto de quem amamos, mesmo quando estamos longe. Uma história linda e emocionante, que traz a icônica e amada imagem do Papai Noel e de nosso caminhão vermelho.” Ainda para Walter Susini, vice-presidente sênior de marketing da Coca-Cola Europa, “passar o tempo dedicado e estar presente no momento com entes queridos será a prioridade acima de tudo”.

Claro, momentos difíceis tendem mesmo a requer união. Algumas empresas, porém, enxergam na crise também oportunidades de marketing, que podem ser abordadas usando valores de responsabilidade social e de filantropia, conforme já destacamos no Boletim de Monitoramento  de Junho.  

 

O Natal é uma das datas mais esperadas do ano, justamente por ser comumente compreendido como um momento de felicidade, paz, amor, solidariedade e renovação de esperanças. Depois de um ano difícil e atípico como 2020, acrescido de elevadas taxas de contaminações, restrições a viagens e dificuldades de ter família e amigos fisicamente reunidos, este comercial certamente será um prato cheio - ou devemos dizer um “copo cheio”? - para muitas pessoas.

 


 

Conflitos de interesses em eventos e na pesquisa envolvendo indústrias de produtos nocivos

Bruna Kulik Hassan, Mariana Pinho, Camila Maranha

 

Pesquisadores da América Latina, envolvidos na questão de conflito de interesses e a interferência de empresas na saúde pública, fizeram uma análise que concluiu que 88% dos eventos de nutrição e dietética realizados na região, entre janeiro de 2018 e dezembro de 2019, tiveram algum tipo de apoio ou patrocínio. Foram coletadas informações sobre o envolvimento da indústria de alimentos por meio de patrocínio de eventos, patrocínio de sessões, palestrantes da indústria de alimentos, bolsas de estudo, subsídios, prêmios e outros tipos de premiação, e concessão de espaços de exposição e estandes. 

 

Um recente caso que chamou a atenção na área de Nutrição em 2020 foi a Conferência FINUT, da Fundação Iberoamericana de Nutrição, realizada outubro, em formato virtual. Como usualmente se observa no formato presencial, havia um espaço online destinado ao grupo de expositores, com destaque para a Danone México, a Associação Internacional de Adoçantes, a Herbalife Nutrition, a Editorial Médica Panamericana, o Instituto de Nutrição da América Central e Panamá (INCAP), o laboratório Glaxo Smith Kline (GSK) e a multinacional holandesa de saúde e alimentação Dutch States Mines (DSM).  Por meio de enquetes, era possível acessar pesquisas e divulgações dos expositores em folhetos no formato digital. A Danone, por exemplo, tinha disponíveis para baixar sete folhetos temáticos. Em particular, o panfleto sobre obesidade infantil trazia cardápios com opções de lanches que incluíam juntamente com  alimentos processados, produtos da marca como água ou bebida de fruta Bonafont e variadas formas de Danoninho (figura 1).


 

Figura 1. Parte do panfleto de divulgação da Danone sobre obesidade infantil

 

A organização do FINUT orientou que palestrantes e participantes declarassem financiamentos recebidos em suas apresentações, demonstrando preocupação com o tema. Mas, mesmo com declarações afirmativas de Conflitos de interesses, mesas compostas por pesquisadores financiados sobre assuntos relevantes para patrocinadores aconteceram. E, como mostrou Marion Nestle em seu livro Uma verdade indigesta, da Editora Elefante, embora pesquisadores assinem essas declarações, a prática vai no sentido contrário.

 

No primeiro dia do encontro, chamou a atenção a sessão Reunião com especialistas: Adoçantes de baixa caloria e sem caloria na saúde pública: por que há controvérsia sobre seu papel na obesidade e no diabetes?, que não aparentava associação com nenhuma empresa do ramo pela programação. Apresentaram o tema Brian Cavagnari, mestre em tecnologia dos alimentos e em nutrição sobre metabolismo de edulcorantes não calóricos, e Hugo Laviada-Molina, professor universitário, diretor do Centro de Nutrição e Medicina Baseadas em Evidência, e coordenador dos documentos de posicionamento sobre edulcorantes baixos ou sem calorias. Em comum, ambos são médicos e declararam conflito de interesse por receberem financiamento de companhias farmacêuticas, de alimentos e bebidas, incluindo um dos expositores da conferência, a Associaçao Internacional de Adoçantes. Além disso, os dois focaram nos problemas dos desenhos de estudos. O primeiro abordou os efeitos dos edulcorantes sobre ganho ou perda de peso e o segundo o consumo de edulcorantes e o risco de diabetes mellitus tipo 2. Novamente em comum, ambos defenderam uma tese similar, a de que o problema da confusão sobre evidências inconclusivas acerca dessas relações é fruto de avaliações mistas das evidências científicas. Argumentaram que os resultados divergem entre estudos com desenhos de ensaios clínicos randomizados, de superior qualidade de evidência, e os estudos de coorte, que trazem quantidade maior de evidências sobre o tema. No entanto, nas apresentações pareceram ter desconsiderado problemas de grande variabilidade entre as pesquisas disponíveis e a falta de achados conclusivos nem mesmo entre os ensaios clínicos.

 

Outra sessão que chamou atenção foi a Café da manhã na América Latina - dados do estudo Elans - Comparação com dados e recomendações internacionais. Trata-se de Estudo Latino Americano de Nutrição, feito em países da região sobre consumo alimentar, atividade física e associação com perfil antropométrico. Mauro Fisberg, professor associado da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo e Coordenador do Núcleo de Nutrição e Dificuldades Alimentares do Hospital Infantil Instituto Pensi-Sabará, apresentou um recorte histórico e a importância do café da manhã para a América Latina. Sua lista de conflito de interesse foi uma das mais longas, sendo alguns de seus financiadores claramente interessados em abordar a importância dessa refeição, como Danone, Nestlé e General Mills. Apesar de apresentar diferentes cenários de consumo do café da manhã e da sua importância para saúde e nutrição, não fez qualquer menção ao Guia Alimentar para a População Brasileira, que não só recomenda a realização da refeição, mas dá exemplos de alimentos in natura ou minimamente processados.

 

Apresentando o The International Breakfast Research Initiatives (IBRI) projects and breakfast around the world, Michael Gibney, pesquisador e professor da Universidade College Dublin, informou ter dado consultoria para a Cereal Partners Worldwide (CPW). De acordo com informações no site da Nestlé, a CPW, sediada na Suíça, foi fundada em 1990, em parceria com a General Mills, e “é uma empresa líder global de cereais matinais por trás de algumas das marcas de cereais matinais mais icônicas do mundo”. Já a IBRI reúne dados de pesquisas dietéticas nacionais do Canadá, Dinamarca, França, Espanha, Reino Unido e EUA, procurando explorar abordagens para definir a ingestão ideal de alimentos e nutrientes para o café da manhã. 

O artigo publicado na revista Nutrients por Gibney, em parceria com co-autores da CPW, Nestlé e outras, sinaliza que os “dados serão valiosos para formuladores de políticas de nutrição, de saúde pública e fabricantes de alimentos, e também permitirão mensagens consistentes para ajudar os consumidores a otimizar as escolhas alimentares no café da manhã.” No site da Nutrition Nestlé Institute é possível encontrar menção ao IBRI e uma apresentação de Gibney. Vale lembrar que esse pesquisador já foi caracterizado como “o ponta de lança” dos ataques contra a Classificação NOVA presente no Guia Alimentar para a População Brasileira. Mas, voltando à apresentação, Gibney deixou clara a necessidade de mais fibras no café da manhã mundo afora, ficando a dúvida nada retórica no ar sobre onde consegui-las.

 

 

Na sequência, financiada pela General Mills e CPW, Jaqueline Lopes Pereira, pós-doutoranda da Faculdade de Saúde Pública da USP, apresentou o estudo Elans e foi complementada por Irina Kovalskys, médica, professora e pesquisadora do Elans,  além de Coordenadora do Comitê de Nutrição, Saúde e Qualidade de vida do ILSI Argentina, colaboradora do IBRI e membro da Argentine Nutrition Society. O ILSI, Internatioanal Life Sciences Institute, é uma organização de pesquisa que reúne as maiores empresas multinacionais fabricantes de ultraprocessados.

As análises do Elans mostraram como o desjejum contribui para melhor ingestão diária de vários nutrientes. Concluíram destacando a necessidade de uma referência de recomendações nutricionais padronizadas para o café da manhã na América Latina.

As apresentações da sessão trouxeram recomendações finais uníssonas: embora já haja um bom consumo de alimentos do café da manhã são necessárias recomendações nutricionais específicas e quantitativas para esta refeição. Vale lembrar aqui da divergência dessa constatação em relação ao Guia Alimentar para a População Brasileira, que traz recomendações qualitativas e traz como regra de ouro evitar produtos alimentícios ultraprocessados, tais como os cereais matinais ultraprocessados vendidos pelas empresas mencionadas. 

Em paralelo ao caso da área da alimentação, continuamos a identificar exemplos se avolumando na área do tabaco. Fruto de uma investigação jornalística, reportagem mostrou claramente como as empresas de tabaco têm assediado médicos e profissionais de saúde ao longo do tempo. As primeiras peças publicitárias com autoridades da saúde datam da década de 40. Engana-se quem imagina que essa relação é “coisa do passado”. Os repórteres identificaram uma série de eventos apoiados e patrocinados por empresas de cigarros em 2017 e também o financiamento de pesquisas para serem apresentadas em congressos médicos no Brasil. A propaganda de produtos fumígenos derivados ou não de tabaco, e isso inclui tudo que você possa pensar relativo ao tabagismo, está proibida, mas a discussão científica não está.  

A investigação científica é necessária. A academia deve pesquisar e analisar os achados relativos, principalmente nos tempos atuais, a novos produtos que estão sendo empurrados pulmão abaixo nos mercados em que são permitidos, e ilicitamente nos que ainda não autorizaram sua comercialização. No entanto, essa relação universidade-empresa deve ser livre dos interesses comerciais da indústria que mata dois em cada três de seus consumidores, mesmo sob a alegação de que agora tem uma inovação que “mataria um pouco menos”. Não dá para simplesmente tapar os olhos para os prejuízos que causam à sociedade.

Foi noticiado que  as  Universidades de São Paulo e Mackenzie realizaram um workshop de planejamento do Curso de Cooperação Policial na Tríplice Fronteira, para combate ao contrabando de cigarros, com o apoio da Philip Morris Internacional no âmbito do programa de fomento "PMI-Impact". Neste projeto, está envolvido o Ministério da Justiça, tendo em vista que as ações de repressão ao contrabando é feito por agentes da Polícia Rodoviária Federal e da Secretaria de Receita Federal.  

Além disso, em novembro a Faculdade São Leopoldo Mandic, com apoio da Philips Morris, realizou o II Seminário Internacional sobre Redução de Danos sobre Tabagismo. O evento também foi organizado pelo VaporAqui, propriedade de Alexandro Lucian, usuário e promotor de vape e acessórios. Pesquisadores e profissionais de saúde, especialmente da área de dependência química, discutiram os dispositivos eletrônicos para fumar. Cabe destacar que há alguns anos a faculdade e a fumageira já haviam se aproximado, o que sugere que a parceria é estratégica.

Abrir brecha para a indústria do tabaco opinar nas políticas de controle do tabaco vai totalmente na contramão da obrigação assumida pelo governo federal em 2005 quando ratificou a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco e comprometeu-se a proteger a política pública de saúde contra os interesses comerciais das empresas de tabaco. Notadamente a indústria diversifica os produtos e alvos das suas estratégias de promoção institucional. Não estabelece parcerias-chave apenas para promover seu portfólio, mas  como ponto importante para construir uma imagem positiva da empresa, afastando qualquer tipo de associação do seu produto com malefícios para a saúde.


A boa notícia é que essas práticas têm sido cada vez mais problematizadas ao redor do mundo, não sendo de se espantar que o reconhecimento desse problema comece justamente pela indústria do tabaco. O recém lançado Índice da Interferência da Indústria Global do Tabaco, por exemplo, cita como uma das formas de interação desnecessária a participação de representantes de governos em eventos patrocinados pelas indústrias. Que o mesmo possa servir como exemplo para outras áreas e até mesmo para o caso do tabaco.

 


 

A construção de marcas e produtos mais saudáveis

Laura Cury, Bruna Kulik Hassan, Mariana Pinho

 

 

A pandemia da Covid-19 fez com que indústrias tivessem que repensar suas estratégias de venda e marketing, com algumas possivelmente não vendo um retorno aos níveis de consumo anteriores. Quando as restrições diminuírem, uma opção é reconstruir mais forte, e mais rápido e usar técnicas de marketing para atrair as pessoas a consumirem mais, basicamente, um novo normal turbinado para compensar as perdas de 2020.

Outra estratégia é ajudar marcas a ficarem mais resilientes e resistirem aos choques externos, como a pandemia, mas também às mudanças climáticas e à devastação ambiental, por exemplo. Para essas empresas, em vez de reconstruir mais forte e mais rápido, o marketing é visto como uma possibilidade de reconstruir de forma melhor. A ideia é que uma versão melhor do negócio de sempre acabará por criar resiliência comercial, bem como construir a lealdade de clientes ao longo do tempo. 

Desde seu surgimento em 2010, o Building Healthier Brands (ou Construindo Marcas mais Saudáveis, em português) tem a missão de “tirar o mercado de alimentos e bebidas da zona de conforto”. O evento reúne profissionais de marketing, pesquisa e desenvolvimento e tem, como financiadores, empresas como WellFood Ingredients, Seara Nature e Heineken, entre outras. Como um dos principais eventos de tendências e inovação do setor, abrange os principais temas sobre marketing, saúde e nutrição. A tendência, porém, ganha um novo e alavancado significado em um mundo pandêmico. 

Pesquisas mostram que pessoas que vivem com doenças crônicas não transmissíveis têm maior risco de ter pior prognóstico, agravar o quadro ou morrer pela Covid-19. O consumo de produtos de tabaco, álcool e alimentos ultraprocessados, portanto, agora representa uma ameaça ainda mais grave à saúde de consumidores, que estão sendo impelidos a reexaminar sua saúde e, também, seus hábitos de consumo. A pandemia piorou o consumo das duas primeiras categorias de produtos, embora note-se uma melhora alimentar da população brasileira no período, com mais alimentos saudáveis, ainda que algumas tendências de ultraprocessados possam ser observadas.

Como consequência, empresas que fabricam esses produtos procuraram atrair consumidores exibindo uma gama de produtos reformulados e supostamente mais saudáveis. Mesmo antes da pandemia, o mercado de alimentos saudáveis estava crescendo e valia mais de US $ 1 trilhão em todo o mundo, mas essa tendência foi aguçada com a pandemia. Segundo Peter Wennström, fundador da Equipe de Marketing Saudável, “o futuro pós-Covid-19 é sobre prevenção e saúde por meio da alimentação”. Já segundo Rick Miller, diretor associado de nutrição especializada da Mintel, agência de inteligência de mercado,  “a tendência da imunidade não é passageira. Vai ficar mais forte e continuar crescendo, pelo menos até recebermos uma vacina. A falta de uma vacina incentiva a experimentação. Consumidores procurarão em outro lugar. As pessoas farão sua própria fé e sistema de crenças. Alimentos e bebidas que podem apoiar o sistema imunológico são uma grande área de interesse para consumidores (...).

Figura 1- Immunity Booster Bread / Fonte: https://www.foodhospitality.in/latest-updates/bonn-launches-herb-seeds-bread-to-boost-immunity-during-covid-19-pandemic/421201/ 

Pesquisas sobre benefícios anti-inflamatórios de frutas, legumes e vegetais deram um impulso às dietas à base de vegetais durante a pandemia, a natureza passou a ter outro significado, mas não quer dizer que todos os produtos à base de vegetais estejam com consumo aumentando. “Todos nós sabemos que as pessoas querem mais plantas, mas querem plantas que possam entender. (...) uma coisa que está sendo exaltada são os substitutos de carne à base de plantas feitos de proteína de soja ou ervilha. Disseram-nos que ela explodiria massivamente com a pandemia Covid-19, mas isso não aconteceu”, diz Julian Mellentin, fundador do New Nutrition Business. Mellentin aponta que alternativas baseadas em plantas foram deixadas nas prateleiras em alguns casos durante a fase de pânico de compra pelos consumidores. De todo modo, o marketing desses produtos têm crescido nos últimos meses.

Figura 2 - Linha Incrível Seara  / Fonte: https://www.incrivelseara.com.br/ 

Um produto que tem de fato saído estampado em páginas de anúncios e prateleiras são os suplementos vitamínicos. Isso porque, ainda em março e abril, no início da pandemia, surgiu uma quantidade grande de (des)informação sobre substâncias supostamente apresentadas como protetoras contra a Covid-19. Apontavam-se a vitamina D e alguns insumos como parte da solução, embora não existam pesquisas livres de conflitos de interesses para comprovação de que eles seriam importantes tanto na prevenção quanto na cura da Covid-19.

 

A reinvenção da própria imagem parece ser o foco da BRF Foods, maior exportadora de frango do mundo e segunda no ranking de maior produtora de proteína animal, que lançou campanha abordando cuidados com seus funcionários, com a população e como detentora de práticas de proteção ao meio ambiente. Embora com menos alarde que outros assuntos relativos à temática Covid-19, surtos da doença em frigoríficos acontecem em diversas partes do Brasil. Em Dourados, no Mato Grosso do Sul, 1.075 casos de Covid-19 do total de três mil correspondiam a funcionários da JBS.

 

Por causa da crise sanitária, a BRF sofreu impactos na sua produção, com a alta do dólar e dos preços de grãos. Houve queda de 50% do lucro líquido em relação ao mesmo período de 2019. Mesmo assim, a empresa teve desempenho acima da expectativa no terceiro trimestre de 2020, com crescimento de 17,5% da receita líquida e um lucro de R$ 219 milhões no período, valor acima do previsto esperado. Os motivos principais foram o aumento também nos preços de seus produtos e a manutenção  das exportações.  

 

Na campanha #NossaPartePeloTodo, a BRF afirmou seu comprometimento com o mundo sustentável e ético, mas passou longe de expor que alguns de seus produtos têm o risco reconhecido para a obesidade e outras DCNTs, principais doenças relacionadas ao agravamento por Covid-19.   



 


 

 

A reinvenção de produtos nocivos é uma tentativa das indústrias e o caso do tabaco é exemplar, com seus novos dispositivos eletrônicos para fumar, como os cigarros eletrônicos e de tabaco aquecido. Para tentar reduzir danos de fumantes, incluindo os fumantes passivos, foram inventados os cigarros eletrônicos, e com eles, uma vaporada de inverdades contestadas periodicamente pela ciência, publicação após publicação. A indústria investe muito para desenvolver esses novos produtos, com ótimos resultados. 

 

Em 2019, a receita da Philip Morris International proveniente desses dispositivos foi de US$ 5,6 bilhões, representando 18,7% a mais que o ano anterior. Sua concorrente, a British American Tobacco, também registrou o crescimento da categoria de novos produtos para 1,3 bilhão de libras, um incremento de 37% em 2019, o dobro da receita de dois anos atrás.

 

 

Figuras 3 e 4: “prints” de tela de Instagram / Fonte - Mariana Pinho

Considerando o histórico dessas empresas e a característica fatal de seu principal produto, não há nada considerado mais inovador do que passar a estar associado a produtos com redução de danos. Toda construção argumentativa utilizada na promoção dos dispositivos eletrônicos leva o consumidor a imaginar que eles poderiam ser inofensivos, afinal é  somente vapor, mas há muita tecnologia por trás, associando-os à falsa ideia de segurança. 

Os dispositivos eletrônicos para fumar são apenas mais um produto nos seus portfólios. Por mais que o CEO da PMI, por exemplo, já tenha afirmado que pretendem deixar de comercializar os convencionais, o mercado de produtos de tabaco segue rentável. Defensores da saúde pública alertam para a falácia do discurso empregado pelas empresas produtoras. 

O caso do tabaco ilustra muito bem a advertência de especialistas em saúde pública e conflitos de interesse mundo afora, de que é preciso cautela antes de aceitar que a reformulação de um produto, aliado à ciência e tecnologia, seja necessariamente benéfica à saúde de consumidores. 

 

E aqui, mais do nunca, vale a velha frase, estampada nos maços. O Ministério da Saúde adverte: fumar faz mal à saúde. Vaporar também.

 


 

Indústria automotiva: um novo olhar para um futuro mais saudável e sustentável

Ricardo Brandão de Oliveira, Professor de Educação Física,  Coordenador do Laboratório de vida Ativa e Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Exercício e do Esporte da UERJ

 

 

Ao desconstruir paradigmas, a pandemia da Covid-19 coloca diante de nós questões sobre quais futuros queremos ter em nossas cidades. Com a redução da utilização de veículos motorizados e a ampliação da infraestrutura voltada ao uso de transportes ativos em diversas cidades do mundo, durante a pandemia, foi observada diminuição dos congestionamentos e menor número de acidentes de trânsito. A qualidade do ar melhorou e muitos passaram a se beneficiar dos efeitos sobre a saúde, de meios mais ativos de transporte, como bicicletas e caminhadas.

 

Os benefícios na saúde relacionados ao maior uso de transportes ativos são amplamente descritos na literatura científica e superam os riscos associados à exposição ao ar poluído e aos acidentes de trânsito em praticamente todas as cidades avaliadas. Pesquisadores da Nova Zelândia concluíram que, caso uma em cada quatro viagens feitas de carro no país por distâncias de até cinco quilômetros passassem a ser feitas através de transportes ativos, os efeitos sobre a qualidade de vida seriam equivalentes a uma das mais importantes políticas públicas de saúde, a taxação de 10% do tabaco. O maior uso de modais ativos nas cidades também tem sido associado a importantes impactos econômicos sobre o SUS e ao meio ambiente, através da redução dos custos no tratamento de doenças crônicas não transmissíveis e redução da emissão de gás carbônico.

 

Apesar das diversas evidências e dos avanços no âmbito político com a aprovação do Plano Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012) e do Programa Bicicleta Brasil (Lei 13.724/2017), que possuem em suas diretrizes a priorização dos modos não motorizados de transportes sobre os motorizados e os serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado, o que se observa na prática é um aumento da frota de carros, estimulada por incentivos fiscais, inclusive nos períodos em que a orientação da política econômica era de maior restrição para as políticas industriais.

 

Se por um lado evidências se acumulam demonstrando os diversos efeitos positivos de investimentos voltados ao maior uso de transportes ativos, revisões sistemáticas revelam enormes impactos de cidades centradas no uso de carros sobre a saúde pública.

Em linhas gerais, podem ser incluídas nesta lista:

Diante de todas as evidências expostas, algumas perguntas são inevitáveis: por quais razões ainda temos cidades centradas no uso de carros? Por quais razões investimentos voltados ao maior uso de transportes ativos não são priorizados como uma importante política de saúde pública?

 

O Marco de Referência sobre a Dimensão Comercial dos Determinantes Sociais da Saúde na agenda de enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis, lançado em novembro de 2020 pela Organização Pan-Americana da Saúde, discute as práticas comuns de grandes corporações, destacando-se a influência de indústrias de produtos não saudáveis, como tabaco, alimentos ultraprocessados e bebidas alcoólicas, as chamadas Big Three,  que são sabidamente relacionadas aos principais fatores de risco das DCNTs e, consequentemente, à maior carga dessas doenças.

 

Embora reconhecida por pesquisadores, sociedades científicas e organizações de saúde de todo o mundo como um dos mais importantes fatores de risco para as DCNTs, a inatividade física não é citada uma única vez neste marco referencial. O documento cita, no entanto, que segundo o relatório da Comissão The Lancet sobre Sindemia Global, o equilíbrio de poder entre os atores nos mecanismos de governança pode determinar a aplicação de leis e regulações, incentivos e desincentivos econômicos, assim como normas e expectativas da sociedade, dando como exemplo o investimento em estradas sendo priorizado em detrimento do transporte coletivo e do deslocamento ativo. 

 

Se investimentos prioritários em estradas é posto como uma barreira ao uso de modais mais ativos de transporte, seria apropriado incluir o setor automotivo na lista de indústrias de produtos não saudáveis.

 

Responsável por cerca de 22% do PIB industrial brasileiro, com um faturamento, em 2015, de US$ 59 bilhões, o crescimento da produção do setor automotivo segue considerado como um importante impulsionador do crescimento econômico do país, sem que suas externalidades sejam contrabalanceadas por políticas favoráveis à sociedade.

 

Ao compararmos as ações de lobby da indústria automotiva com as ações das Big Three, notamos muitas similaridades que caminham na direção de impedir com que políticas públicas que afetem seus interesses econômicos avancem. Assim como a indústria do álcool, grandes investimentos em marketing são desenhados para criar a percepção de que seus produtos representam aspiração e status social, estabelecendo uma norma cultural associada à aquisição e uso de carros. A propaganda de automóveis pode ter efeitos psicossociais sobre a saúde, tanto diretamente, por meio do incentivo à compra de carros maiores e mais perigosos, quanto indiretamente, por meio da validação do comportamento "machista-agressivo" ao dirigir. Além disso, a publicidade onipresente ajuda a normalizar a inatividade física. 

 

 

 

 

 

 

Dirigir tornou-se uma parte tão normal da vida cotidiana que muitos proprietários de automóveis não questionam mais o uso de carros para viagens curtas. Em São Paulo, por exemplo, estima-se que 25% dos deslocamentos diários feitos por carros sejam por trajetos inferiores a três quilômetros e que 60% não ultrapassam distâncias superiores a cinco quilômetros. Por outro lado, caminhar deixou de ser uma atividade natural e se tornou um tipo de atividade física que as agências de saúde lutam para promover.

 

Todas essas indústrias possuem profissionais e empresas associadas que supostamente defendem discursos de regulação como forma de estarem presentes em grupos de influência e decisores políticos que, ao final, atuam para impedir a implementação de leis que vão de encontro aos seus interesses econômicos. 

 

Na década de 1980, montadoras de automóveis tornaram-se membros fundadores da Global Climate Coalition, um grupo de poderosas empresas dos Estados Unidos que se opunham às regulamentações ambientais e que alcançou o objetivo de retirar os Estados Unidos do Protocolo de Quioto, instrumento da Convenção Quadro sobre Mudança Climática, das Nações Unidas. Em 2006, a Royal Society do Reino Unido, a mais antiga academia de ciência do mundo, escreveu à gigante do petróleo Exxon expressando preocupações sobre o apoio que a ExxonMobil vinha dando a organizações que desinformavam o público sobre dados científicos a respeito das mudanças climáticas, o mesmo que faz a indústria do tabaco com relação aos riscos relacionados aos dispositivos eletrônicos para fumar. Embora as indústrias de petróleo e automóveis adotem estratégias de publicidade no sentido de apoiar a agenda ambiental, investimentos em energias renováveis seguem inferiores aos gastos na pesquisa de campos de combustíveis fósseis. A FIA Foundation for the Automobile and Society, embora adote um discurso voltado à segurança das vias e à redução de acidentes, segue promovendo apenas medidas educativas com foco no pedestre, que são reconhecidamente ineficazes, e apoiando o investimento em grande escala na construção de estradas em países de baixa renda. 

 

Em agosto de 2020, a National Association of City Transportation Official, a NACTO, uma coalizão de departamentos de transportes de cidades norte-americanas, em parceria com a FIA Foundation e outras organizações, realizaram um evento para o lançamento do guia “Designing Streets for Kids”, no qual são discutidos os inúmeros benefícios de ruas sustentáveis e planejadas de forma amigável e segura para as crianças. É no mínimo curioso uma organização que diz realizar pesquisas sobre questões de políticas públicas relacionadas à interação do automóvel com a sociedade, que apoia iniciativas que melhoram o desempenho ambiental do carro e que atende aos interesses do setor automotivo, promova ações voltadas a ruas mais seguras, uma vez que parte das soluções passam pelo menor uso de carros nas cidades.

 

Cigarro, bebidas alcoólicas, adoçadas e carros são normalmente posicionados como escolhas e direitos individuais. Os lobbies costumam se utilizar da expressão Estado Babá como forma de ataque a ações governamentais que regulamentem, por exemplo, o uso de cigarros e reduzam a velocidade dos carros. O argumento da auto-regulação tem sido uma prática comum de todas essas indústrias. Financiam pesquisadores e produzem desinformação sobre os efeitos nocivos de seus produtos. Por fim, migram seus mercados para países de baixa e média renda, nos quais as capacidades de governos locais e da sociedade civil organizada em combater suas ações são limitadas.

 

Apesar das semelhanças, o lobby de carros costuma ser muito mais difuso, podendo incluir fabricantes de automóveis, revendedores de automóveis, empresas de aluguel de automóveis, garagens, organizações automotivas, indústria do petróleo, construtoras de estradas, construção civil entre outras, sendo assim de mais difícil monitoramento e caracterização.

 

Promover a educação ao invés da regulamentação tem sido algumas das estratégias preferidas das indústrias do álcool, do tabaco e da segurança no trânsito, mesmo sendo reconhecidamente menos eficazes do que as intervenções destinadas a restringir a publicidade e do que as políticas tributárias. 

 

Considerar os efeitos negativos da indústria automotiva torna-se, hoje, imperativo para a saúde pública. Colocar na mesma agenda os acidentes de trânsito, a obesidade, a inatividade física, a poluição do ar e as mudanças climáticas com os processos sociais que estabeleceram o domínio do carro oferece uma nova direção para a epidemiologia social. 

 


 

Equipe de monitoramento:
 
Anna Monteiro
Bruna Hassan
Camila Maranha
Denise Simões
Fabiana Fregona
Laura Cury
Mariana Pinho
Marília Albiero
Victoria Rabetim
 
Revisão e edição: Anna Monteiro
Arte: Ronieri Gomes




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