Boletim de monitoramento - Março 2021

10.03.21


ACT Promoção da Saúde

 

Editorial

Você, leitor ou leitora, já deve ter tido a sensação de viver o termo Mito de Sísifo, aquele que versa sobre o esforço de fazer rolar uma pedra enorme montanha acima e, quando se chega ao topo, essa pedra desaba e você tem que começar a empurrá-la novamente todo o caminho de subida.

Em nosso trabalho com o monitoramento dos fatores de risco de doenças crônicas não transmissíveis, vemos esse mito de forma contínua. Práticas de uma indústria são recicladas e aproveitada por outras, com outra roupagem de acordo com a época. O objetivo final é projetar a imagem corporativa, esconder seus danos e figurar como empresas capazes de conquistar espaço no coração da população. Aprendemos muito com as táticas da indústria do tabaco de influenciar nas políticas públicas e vemos corporações da área de alimentação e álcool, por exemplo, seguirem o mesmo caminho e repetirem  essas práticas. Se olharmos para o lado, percebemos fabricantes de plástico e de petróleo beberem da mesma fonte, apesar de toda a evolução que já foi alcançada com algumas medidas para regulação de produtos de tabaco.

Nesta edição, trazemos     à discussão o Big Brother Brasil, que virou o assunto mais falado no país, embora vivamos uma crise política sem igual e um pico da pandemia da Covid-19, com aumento dos números de casos e de mortos numa curva trágica, enquanto a vacinação avança num ritmo muito lento. O programa da TV Globo tem conseguido reunir as principais empresas fabricantes de produtos não saudáveis, inclusive de bebidas alcoólicas, como patrocinadoras. Acompanhe Recorde de audiência: o caso BBB, análise de Victoria Rabetim e Bruna Kulik Hassan. 

Há tempos vemos as companhias de cigarro sendo premiadas por boa cidadania corporativa, logo elas que causam danos à saúde e ao meio ambiente ao longo de toda sua cadeia produtiva, desde a produção do fumo até o descarte da guimba e embalagens. Embora a carga do tabagismo seja alta demais para toda a sociedade, esses prêmios continuam a ser dados às principais fabricantes e estimulam outros setores a fazerem igual. É sobre esse filme repetitivo de que trata O prêmio que não compensa, assinado por Mariana Pinho e Adriana Carvalho.

Já Marília Albiero e Paula Johns, com Grandes empresas, grandes mentiras – Plástico, consumo e sustentabilidade, rolam a pedra montanha abaixo no terreno da sustentabilidade e do consumo de plástico,  intrinsecamente ligado às questões climáticas, de saúde pública e das epidemias que, evidências mostram, têm seu cerne na produção e consumo.  Elas apontam para a omissão do setor produtivo e a eterna responsabilização do indivíduo, destacando uma série de ações das empresas para criar a impressão de trazer sustentabilidade para o negócio, mas que não passam de marketing para vender mais produtos e fazer a marca ficar entre as mais queridas pelos consumidores.

E se você acha que já viu esse filme antes, Camila Maranha e Laura Cury trazem à tona programas da indústria de petróleo para negar seus danos ao meio ambiente, gerar controvérsia e confundir a população sobre as mudanças climáticas, usando cientistas e pagando pesquisas duvidosas. Exatamente como sempre fez a indústria do tabaco. Não deixe de ler Dèjá vu – a indústria do petróleo em foco.

Boa leitura, 

Anna Monteiro

Diretora de Comunicação

 


 

Recorde de audiência: o caso BBB

Victoria Rabetim

Bruna Kulik Hassan

 

A 21ª edição do Big Brother Brasil começou no fim de janeiro e desde sua primeira semana o programa lidera a audiência no horário nobre da televisão aberta e as conversas no ambiente digital, principalmente no Twitter e no Club House, nova rede social. O programa se tornou o assunto mais comentado do país, superando temas como Covid-19, política e K-pop no Twitter. Antes mesmo de começar, já ocupava o 7º lugar nos Assuntos do Momento do Twitter e gerou mais de 35 milhões de tweets na semana de estreia. Neste mesmo período, a hashtag #BBB21 foi a mais citada em todo o mundo.

 

Volume de tweets durante a estreia do BBB nos últimos três anos

 

Em 2021, a produção resolveu fazer uma proposta comercial bem diferente e flexível, animando o mercado publicitário e atraindo mais patrocinadores a exporem suas marcas. O crescimento de patrocinadores se deveu especialmente à entrada da edição do ano passado no Guinness World Records, por atingir mais de 1,5 bilhão de votos em um programa de televisão. 

Nesta edição, eles abriram duas cotas diferentes para patrocínio: a Big, avaliada em R$ 78 milhões; e a Anjo, custando R$ 59 milhões, onde estão Amstel, Mc Donald’s e Seara. Já entre as cotas especiais está a Coca-Cola, que patrocina um quadro semanal chamado Cinema do Líder. Não há mais informações sobre a negociação das cotas entre a emissora e os anunciantes.

Quadro semanal Cinema do Líder, patrocinado pela Coca-cola

Apesar da falta de transparência com os valores contratados, é notório o impacto avassalador de promover uma marca no BBB. A Americanas, que atua com o e-commerce de diversos alimentos ultraprocessados, teve um crescimento de 390% no volume de downloads do aplicativos durante a edição de 2020, comparada à edição anterior. Não é à toa que a empresa renovou seu contrato e entrou na cota Big deste ano.

Por ser o assunto mais comentado do momento nas redes sociais no Brasil, especialistas de comunicação apontam a importância de entrar nos debates sobre o BBB, mesmo para marcas que não sejam patrocinadoras. No Twitter, o time de marketing preparou um guia com orientações para as marcas aproveitarem a oportunidade estimulando a interação com os usuários.

A Skol usou a polêmica envolvendo a participante Karol Conká, cantora e apresentadora, que já tinha 1,5 milhão de seguidores no Instagram anteriormente à sua entrada no BBB. O meme sugeria uma mudança no nome da marca, aproveitando a repercussão negativa da participante, que saiu na última votação com 99,17% de rejeição do público. O post foi excluído em seguida para evitar as consequências de seu cancelamento.

 

Print do tweet da Skol pegando carona no tema do BBB e apagado em seguida 

A polêmica com a artista, acusada de ser xenófoba e de fazer tortura psicológica no programa, chegou até a estimular o público a realizar um boicote das marcas patrocinadoras do BBB, mas na opinião de especialistas de marketing não há um consenso sobre a imagem das empresas que patrocinam o programa em relação ao que vem acontecendo dentro da casa.

 

Tweet “cancelando” os patrocinadores do BBB com mais de mil likes

A situação desagradável do programa fez com que outra cantora, a Anitta, criasse seu próprio reality show, o “Ilhados com Beats”, em que ela convidou nove amigos influenciadores que cumpriam provas e desafios isolados em uma ilha.

O reality Ilhados foi patrocinado pela Skol Beats, marca de bebida alcoólica da qual Anitta é head de criatividade e inovação. O programa estreou em fevereiro e foi transmitido no perfil do Instagram da marca. A Beats também levou 5 seguidores da marca para “curtir o pós gravações” com os participantes na ilha.

Anitta e os participantes consumindo a bebida alcoólica patrocinadora do reality

Retornando ao BBB, podemos observar que a estratégia de comunicação das patrocinadoras está bem alinhada ao programa. O McDonald's patrocinou uma prova do líder de resistência que se estendeu ao longo da madrugada e estimulou as vendas de delivery de seus produtos. No dia seguinte, a empresa lançou a hashtag #MéquiNoBBB21, que foi patrocinada dentro da plataforma para estar nos Trending Topics do Twitter e obteve uma enxurrada de comentários sobre o quanto os telespectadores ansiavam por pedir seus produtos.

Hashtag patrocinada pelo Mc Donald’s nos Trending Topics

A Coca-Cola usou a mesma estratégia com o patrocínio do quadro “Cinema do Líder” para alguns participantes. No dia seguinte, estava com a hashtag patrocinada #AbertosProMelhor nos Trending Topics do Twitter, além de publicar outros posts alinhados ao cronograma da casa.

O Twitter não revela o valor do investimento para colocar uma hashtag entre os Assuntos do Momento durante 24 horas, obtendo alcance massivo. Segundo o Wall Street Journal, esse valor era de US$ 100 mil, em 2010. Ao entrar em contato com a plataforma sobre este tema, eles afirmam que o valor pode variar de acordo com o período.

Outra ação da Coca-Cola gerou muita polêmica nas redes sociais: a prova do líder patrocinada pela marca, que foi vencida pela participante Karol Conká. Pela falta de popularidade de Conká, o público começou a publicar tweets em tom de brincadeira dizendo que passaria a beber a marca concorrente após a prova.

 

Tweet de Felipe Neto sobre o ocorrido - ele possui 13 milhões de seguidores na rede

A Pepsi entrou nos assuntos mais comentados, mas saiu momentaneamente, o que abriu uma discussão sobre a transparência em relação à classificação da plataforma sobre os critérios utilizados para que temas atinjam os Trending Topics. Um dos maiores influenciadores digitais do Brasil, Felipe Neto, questionou o desaparecimento repentino da marca. 

Tweet questionando a plataforma sobre a classificação dos assuntos mais comentados do momento

Para um programa assistido por jovens e crianças há um conteúdo excessivo de publicidade de bebidas alcoólicas e não alcoólicas, sem qualquer tipo de regulação, e pouca transparência quanto aos critérios para levar um tema ou hashtag ao topo das discussões. 

Vale lembrar, ainda, que no Brasil qualquer publicidade dirigida a crianças é considerada abusiva, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, o Marco Legal da Primeira Infância e a Resolução nº 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

 


 

O prêmio que não compensa

 

Mariana Pinho

Adriana Carvalho 

 

No contexto corporativo tem se tornado comum companhias receberem prêmios e reconhecimentos por suas práticas empresariais.  Os relatórios anuais institucionais e as redes sociais das empresas de tabaco, bebidas adoçadas e álcool demonstram que elas investem em programas de recursos humanos, como inclusão social, direitos humanos, questões relativas a gênero, e em projetos sociais de combate ao racismo, à violência doméstica e feminina, e ao trabalho infantil. Isso sem falar nos projetos de proteção ambiental. Em tempo de pandemia, mostramos em edições passadas como essas empresas apoiaram a instalação de unidades de saúde de campanha, produziram e distribuíram insumos e, no caso das empresas de tabaco, se envolveram em pesquisas de desenvolvimento de vacinas contra o coronavírus. 

É válido e importante que as empresas adotem políticas internas de inclusão e suas práticas estejam de acordo com os direitos humanos e normas de proteção do meio ambiente. No entanto, quando os projetos e ações relacionados ganham visibilidade externa, é necessário não desvencilhar suas práticas dos danos que essas empresas causam para a saúde e o meio ambiente, a sociedade e o Estado.

No caso das empresas de tabaco, é fato incontestável que fumar causa forte dependência e está associado a mais de 70 doenças, dentre elas as cardiovasculares, pulmonares, câncer e diabetes. O tabagismo gera um custo de R$ 56 bilhões ao ano ao sistema de saúde brasileiro, relativos aos custos diretos, pelo tratamento das doenças tabaco-relacionadas, e indiretos decorrentes da perda de produtividade devido à morte prematura e incapacidade. Ainda que o governo arrecade com tributos provenientes da venda de cigarros, o montante representa apenas 23% dos custos, ou seja, R$ 13 bilhões.

E quando olharmos para o lado do produtor de tabaco e sua família, também vemos prejuízos. Além da dependência econômica, o uso de agrotóxicos no plantio de fumo expõe os agricultores a riscos de intoxicação, desenvolvimento de doenças psiquiátricas e neurológicas e aumento de risco de suicídio, como mostram as pesquisas realizadas em regiões produtoras. Há registros de trabalho infantil e análogo ao escravo nas lavouras de tabaco.

As empresas fabricantes de cigarros, grandes corporações multinacionais bilionárias, possuem um histórico nada honroso. Documentos internos dessas empresas, que se tornaram públicos, e decisão judicial norte-americana revelam que se trata de uma indústria pautada pela falta de ética e pela ausência de compromisso com a vida e a saúde de fumantes e não fumantes, que mentiu, omitiu, enganou e, de forma conspiratória, fraudou os Estados Unidos e o mundo. Em ação movida pelo Departamento de Justiça dos EUA, em 1999, contra nove fabricantes de cigarros (Estados Unidos vs Phillip Morris), houve a sentença histórica que reconhece que a indústria do tabaco está por trás da epidemia tabagista há 50 anos e atua em conjunto e de forma coordenada para enganar a opinião pública, governo, comunidade de saúde e consumidores.

São intensas e permanentes as tentativas promovidas pelas empresas fumageiras para ofuscar os danos que causam à sociedade e para minar ou desvirtuar as atividades de controle do tabaco. Desse modo, a Convenção-Quadro da Organização Mundial da Saúde, tratado internacional ratificado por 181 países e a União Europeia, estabeleceu um mecanismo de proteção das políticas públicas contra os interesses comerciais e outros das empresas de tabaco, por meio do artigo 5.3, em conformidade com a legislação nacional e, para tanto, os governos não devem apoiar atividades da indústria do tabaco descritas como socialmente responsáveis.

Além do artigo 5.3, o Pacto Global das Nações Unidas, maior iniciativa de sustentabilidade corporativa do mundo e que incentiva as empresas a alinhar suas estratégias e operações com os princípios universais de direitos humanos, trabalho, cuidados ambientais e anticorrupção, proíbe a partipação da indústria do tabaco, desde 2017.

Apesar desses instrumentos internacionais, em 2020 a  Prefeitura de São Paulo concedeu o selo de Direitos Humanos e Diversidade à Philip Morris Brasil, pelo conjunto de seus programas englobados na denominação Empow#her, cujo objetivo é descrito como o de “ampliar e reconhecer a liderança feminina dentro da organização, e Stripes Brasil, voltado à diversidade e destinado à garantia de direitos aos profissionais LGBTI+”. O Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco, o Sinditabaco, que a empresa integra por meio de seu Instituto, recebeu da Organização dos Advogados do Brasil uma homenagem na categoria Justiça e Cidadania da Premiação Innovare.

Em razão de seu histórico e dos danos causados pelo consumo de seus produtos, a indústria do tabaco se viu quase obrigada a investir em ações de responsabilidade social, visando melhorar sua imagem junto à sociedade. O reconhecimento público de suas práticas corporativas a distancia dos prejuízos sociais, ambientais, econômicos e sanitários que causam à sociedade. Inevitavelmente, os prêmios contribuem para mantê-las ativas no mercado e com uma boa imagem corporativa e, assim, perpetuam seus produtos no cotidiano dos atuais e dos potenciais consumidores. Desta forma, também ganham simpatia entre os tomadores de decisão. Fazem isso para vender e lucrar mais a um alto custo para a sociedade brasileira. 

Ponderamos aqui que, na mesma linha de raciocínio sobre a falta de coerência de premiar empresas de tabaco por algumas práticas desconsiderando as externalidades negativas do seu negócio, isso deveria valer também para todas as outras empresas produtoras de commodities não saudáveis, como é o caso, por exemplo das fabricantes de bebidas alcoólicas e de alimentos e bebidas ultraprocessados, assim como a indústria de petróleo, como abordamos nesta edição.

Dessa forma, a melhor postura é seguir a Convenção-Quadro e a decisão do Pacto Global da Organização das Nações Unidas no sentido de não dar apoio ou visibilidade às ações de responsabilidade social realizadas pelas empresas de tabaco.

Infelizmente, não parece ter sido este o caso da UN SDG Action Awards, uma premiação promovida pela ONU para entidades que realizaram iniciativas no combate à Covid-19, que reconheceu a Ambev pelas ações de solidariedade promovidas na pandemia. 

A conclusão é essas empresas aproveitam toda e qualquer brecha que se abra e nós, como sociedade, ainda que temos um longo caminho a percorrer.

 


 

Grandes empresas, grandes mentiras - Plástico, consumo e sustentabilidade

 

Paula Johns

Marília Albiero

 

Se toda a história da Terra fosse contada em apenas um dia, a nossa presença aqui  provavelmente representaria apenas os seus últimos milésimos de segundos, como mostra o vídeo Timelapse of the Entire Universe. Mas, apesar de não habitarmos este planeta há muito tempo, o impacto que  deixamos por aqui já é devastador.

Ao ler o sumário executivo de relatório recém lançado pela organização Changing Markets Foundation, intitulado  Talking Trask, a sensação é de ler mais um de seus capítulos que se repete inúmeras vezes e ratifica, pela milionésima vez, que vivemos uma distopia. A era do Antropoceno  caminha a passos largos para inviabilizar a vida humana no planeta. Cunhado pelos cientistas Paul Crutzen e Eugene F. Stoermer, o termo Antropoceno define uma nova era geológica onde as atividades humanas, desde a agricultura até o desenvolvimento do plástico, do concreto e da energia nuclear, passando pelo aquecimento global, vem afetando a Terra de tal forma que parece ter criado um novo período de tempo geológico.

Talking Trash investiga táticas da indústria de plástico em 15 países nos cinco continentes e expõe o que está por trás de uma crise de poluição sem precedentes na história. São 400 milhões de toneladas de plástico produzidas anualmente e esse número cresce. Estimativas apontam que a produção vai dobrar até 2030. Até 2050 a previsão é de que teremos mais plásticos do que peixes nos oceanos. 

Rios, solos, oceanos, e inclusive nossos corpos, estão cheios de microplásticos, agrotóxicos e uma quantidade imensurável de coquetéis de substâncias químicas produzidas pelo homem que causam inúmeros desequilíbrios ecológicos, que por sua vez causam um sem número de doenças e mortes prematuras. 

A crise do plástico é também da a biodiversidade, do clima, da saúde pública e das epidemias causadas pelo modo hegemônico vigente de produção e consumo. Podemos dizer que é também uma crise profunda de governança e de accountability, a palavra que não existe em português, mas tem um significado que vai além de controle, fiscalização, responsabilização ou prestação de contas.

Da indústria de combustível fóssil, envolvida na origem da produção do plástico, até a dos produtores de embalagens, na ponta final dessa cadeia, de forma individual ou coletiva, todos estão envolvidos na crise e aparentam liderar um movimento para apontar as soluções, diante dos problemas que se tornam cada vez mais evidentes. 

Para a sociedade e governos, essas indústrias comunicam robustos compromissos e acordos voluntários e apresentam grandes inovações na área de embalagem, rompendo barreiras tecnológicas nunca antes pensadas. 

No entanto, o relatório demonstra que, nos bastidores, essas empresas fazem de tudo para manter seus lucros intactos e seguir inundando o mundo com produtos baratos e descartáveis. A dúvida que vem é sobre como podemos esperar que quem vive às custas do problema que criou estará disposto a solucionar o problema. Os exemplos coletados revelam que mesmo quando as empresas aparentam fazer o que é certo, na prática não o fazem.  

Para conseguirmos conter a crise do plástico, as soluções deveriam seguir a ordem de não gerar, reduzir, retornar para vidro e, por último, reciclagem. E por fim, disposição adequada dos rejeitos, sendo que somente eles devem ser destinados para os aterros sanitários. 

As indústrias não implantam a logística reversa, um conjunto de procedimentos e meios para recolher e dar encaminhamento pós-venda ou pós-consumo ao setor empresarial, para reaproveitamento ou destinação correta de resíduos. Para isso acontecer o setor produtivo deveria arcar com o custeio da logística e custear o sistema de coleta da fração reciclável, que é em torno de 30%, caso esse custo fosse internalizado pelas empresas. Talvez isso fosse mudar as opções das indústrias sobre a escolha das embalagens utilizadas. 

O que vemos na prática é uma omissão profunda do setor produtivo, a responsabilização do indivíduo e uma série de ações sociais cuja função principal acaba sendo a de green washing,  ou seja, a de dar uma conotação verde ao problema para desviar atenção do que realmente importa.

Não deveríamos nos surpreender com esta situação, uma vez que aproximadamente 30% do consumo de plástico é para o setor de alimentos, bebidas e agricultura, sendo que uma parcela significativa é utilizada como embalagem para os produtos ultraprocessados. A Coca-Cola, Pepsico, Nestlé, Unilever lideram o ranking dos piores poluidores de plástico do mundo, mas podemos observar também uma das grandes do setor tabaco, a Philip Morris.

 

Fonte: Statista.com

 

Fonte: Atlas do Plástico

Quem acompanha a agenda de saúde pública para o controle do tabaco e do álcool e da promoção da alimentação saudável, com certeza já reconheceu as muitas similaridades entre as táticas utilizadas pelas respectivas indústrias.  Ao trazer o fator plástico ampliamos o escopo do impacto na saúde humana e do planeta e adentramos a seara de cadeias produtivas poluentes que se retroalimentam. Percebemos também que são os mesmos atores que orquestram uma ação coordenada numa escala global com o mesmo modus operandi,  fazendo uma cortina de fumaça  e se isentando da responsabilidade, além de agir como se não tivessem sido essas mesmas empresas que criaram o problema. A culpa tende a recair nos indivíduo. E também, nesse caso, o custo resultante dos resíduos não está nem de longe  incluído no preço do produto final, assim como o custo da saúde. 

Acreditamos que a redução do uso de plástico não deve ser apenas responsabilidade do consumidor, mas sim parte de uma mudança sistêmica, integrando a pauta ambiental com a da saúde. Desta forma, ampliando as vozes da sociedade civil, conseguiremos ser mais fortes e efetivos para pressionar o avanço de uma legislação integrada e uma plena responsabilização das empresas.

 

Fonte: Associação da Indústria do Plástico do Uruguai.

 


 

Dejà Vu - A industria do petróleo em foco

 

Laura Cury 

Camila Maranha

 

Déjà Vu é um termo que, no francês, significa algo já visto. A expressão é usada para descrever a reação psicológica da transmissão de ideias de que já se esteve em algum lugar antes ou de que já se viu aquelas pessoas ou aquele elemento. Muitas vezes é assim que nos sentimos ao nos depararmos com ações corporativas de algumas empresas de outros setores e que causam impactos negativos não apenas à saúde das pessoas, mas também ao meio ambiente, depois de termos investigado e analisado a atuação da indústria do tabaco e seus desfechos. 

Você já teve Déjà vu? Saiba o que é e por que ele acontece - Segredos do  Mundo

No âmbito das ações corporativas, uma reportagem recente da BBC mostrou como a indústria do petróleo pôs em dúvida o aquecimento global usando as mesmas táticas das fabricantes de cigarro. Quarenta anos atrás, em 1981, Marty Hoffert, autoridade líder em energia avançada, criou um modelo que mostrava que a Terra se aqueceria de modo significativo devido aos efeitos da ação humana, o que produziria mudanças climáticas sem precedentes. Hoffert elaborou o modelo enquanto trabalhava para a Exxon, uma das maiores empresas de petróleo do mundo e que gastava milhões de dólares em pesquisas com o intuito de liderar o mercado. Ele compartilhou os achados com seus gerentes, mostrando os efeitos devastadores de continuar a queimar combustíveis fósseis para mover carros, caminhões e aviões, mas a reação deles não foi a que Hoffert esperava.

Para o especialista, o que a Exxon fez “foi imoral. Espalharam dúvidas sobre os perigos das mudanças climáticas, enquanto suas pesquisas internas confirmavam a seriedade dessa ameaça." O "Posicionamento da Exxon", documento interno da empresa apresentado confidencialmente para o conselho em 1989, e que mais tarde se tornaria público e seria doado à Universidade do Texas em Austin, revelou que a orientação era enfatizar a incerteza sobre as mudanças climáticas, já que havia receio que o público pudesse se opor e promover alterações na forma como a energia é utilizada, impactando de forma negativa os negócios. 

 

Documento interno dos anos 1980 mostra o chamado "Posicionamento da Exxon", determinando que se "enfatize a incerteza" sobre as mudanças climáticas, publicado em reportagem da BBC.

Nesse ponto, já surge a primeira semelhança entre as estratégias empregadas pelas indústrias de energia com a indústria do tabaco, pioneira em empregar diversas táticas para continuar a gerar lucros por meio da venda de um produto nocivo. Na década de 1950, a indústria do tabaco já questionava os elos científicos entre o fumo e o câncer. Como lembrado pela matéria da BBC, um documento da empresa tabagista Brown and Williamson resumiu a abordagem: "A dúvida é nosso produto, já que ele é a melhor forma de competir com o 'corpo de evidências' que existe na mente do público em geral". John Hill, considerado guru de relações públicas e que fundou a empresa Hill and Knowlton, um dos maiores de relações públicas, sugeriu fundar o "Comitê de Pesquisa da Indústria do Tabaco" para promover "a existência de visões científicas firmes que mostrassem que não há provas de que fumar cigarro causa câncer de pulmão". 

A reportagem da BBC também aborda o projeto "Whitecoat" (ou jalecos brancos), que confrontou cientistas para criar uma confusão a fim de levantar dúvidas sobre as evidências científicas existentes. Outro exemplo é o caso do memorando interno da empresa tabagista RJ Reynolds, de maio de 1979, que afirma que "graças a testemunhos com evidências científicas favoráveis, nenhum queixoso conseguiu obter um centavo de nenhuma empresa de tabaco em processos judiciais alegando que o fumo causa câncer de pulmão ou doenças cardiovasculares, mesmo que 117 desses processos tenham sido iniciados desde 1954." No entanto, em 2006, uma decisão judicial histórica, proferida pela juíza Gladys Kessler, decidiu que as empresas de tabaco americanas eram culpadas de interpretar de modo fraudulento os riscos de saúde associados ao fumo.

As empresas de combustíveis também recrutaram e treinaram cientistas independentes para dar depoimentos dúbios a respeito da mudança climática induzida pelo homem. Assim, ainda que o público pudesse suspeitar da fala de executivos da indústria petrolífera, poderia confiar na visão de cientistas aparentemente independentes, mas que estavam recebendo dinheiro da indústria do petróleo. Estudo feito por Bob Brulle, professor emérito da Universidade de Drexel (EUA), identificou 91 instituições que negaram ou minimizaram os riscos do aquecimento global e foi descoberto que, entre 2003 e 2007, a ExxonMobil deu a alguns deles US$ 7,2 milhões. 

Bob Brulle também identificou um novo desafio: dados mais recentes indicam que a Koch Industries e a ExxonMobil, duas das maiores apoiadoras da negação da ciência do clima, recentemente se retiraram do financiamento público de organizações de contramovimento. Coincidindo com o declínio no financiamento rastreável, o valor do financiamento dado a organizações de contramovimento por meio de fundações de repasse de terceiros como Donors Trust e Donors Capital, cujos financiadores não podem ser rastreados, aumentou dramaticamente

Além de pesquisadores, foram também financiadas organizações chamadas de astroturf, que são falsas organizações de base, geralmente patrocinadas por grandes corporações, para apoiar quaisquer argumentos ou reivindicações em seu favor, ou para desafiar e negar aqueles que estão contra elas. Elas constituem a versão corporativa dos movimentos sociais de base, que conectam pessoas localmente de forma proativa com o objetivo de promover questões pró-sociais e ambientais. Em estudo liderado por Charles H. Cho, professor Professor Assistente de Contabilidade na John Molson School of Business da Universidade de Concordia, grandes empresas poluidoras incentivaram e financiaram organizações astroturf para minar a importância das atividades humanas nas mudanças climáticas. 

Alguns livros vêm expondo esse assunto de forma aprofundada. Segundo Naomi Oreskes, professora de história da ciência na Universidade de Harvard e coautora do livro Merchants of Doubt (Mercadores da Dúvida), "em vez de aceitar as evidências científicas, eles [Exxon e outras empresas de energia ou indústrias dependentes dos combustíveis fósseis, que se uniram na Coalizão Global do Clima para protagonizar um agressivo lobby entre políticos e a imprensa dos EUA] tomaram a decisão de lutar contra os fatos. (...) Promoveram campanhas publicitárias projetadas para minar o apoio público, escolhendo apenas alguns dados que favoreciam sua narrativa e até mesmo perguntas retóricas para criar confusão e dúvida", como  no caso da propaganda que perguntava ao público: “Se o mundo está esquentando, como é que [o Estado de] Kentucky está ficando mais frio?”, como mostra a figura a seguir.

 

 

David Michaels, professor de saúde pública da Universidade George Washington e autor de The Triumph of Doubt (O triunfo da dúvida), detalha como as indústrias de pesticidas, plásticos e açúcares reproduziram as mesmas táticas do chamado 'manual de estratégias do tabaco'.

Acadêmicos temem que o uso da incerteza para confundir o público já tenha erodido parte significativa da confiança pública mundial em especialistas e em fatos, com diversos produtos de indústrias nocivas à saúde das pessoas e do planeta e, inclusive, em questões muito atuais, como a vacinação e o coronavírus. Conforme relatório “Me engane de novo”, com táticas aperfeiçoadas pela indústria do tabaco nos últimos 50 anos, as empresas multinacionais de alimentos, bebidas e álcool, estão trabalhando para impedir, atrasar e minar políticas que salvam milhões de vidas.  

Infelizmente, enquanto muitos países estão sendo incitados a tomar ações para deter as mudanças climáticas e proteger o meio ambiente, empresas gigantes de combustíveis fósseis processam governos em bilhões de dólares com base no Tratado da Carta da Energia (TCE), criado em meados da década de 1990 para incentivar empresas de energia a investirem em economias em desenvolvimento, e que vem sendo utilizado para processar países que tentam desativar usinas de carvão e plataformas petrolíferas, prejudicando a transição para uma energia 100% limpa. A plataforma Avaaz está com uma petição online sobre esse tema.

Assim, são muitas as instituições incapazes de administrar as externalidades negativas que seus produtos causam, priorizando atividades econômicas nocivas à saúde das pessoas e do planeta. Segundo o relatório The Economics of Biodiversity, publicado em fevereiro de 2021, uma estimativa conservadora do custo total global dos subsídios que prejudicam a Natureza é de cerca de US$ 4 trilhões a US$ 6 trilhões por ano. Os arranjos institucionais são insuficientes para proteger os bens públicos globais, como o oceano e as florestas e o clima.

A humanidade precisa mudar o jogo, como prega a campanha da Agenda 2030. Conforme atenta o Professor Partha Dasgupta no relatório mencionado acima, continuar na trilha atual apresenta extremos riscos e incertezas. O crescimento e o desenvolvimento sustentáveis ​​exigem mudanças no comportamento de todos os atores envolvidos, inclusive nos que detêm meios importantes de comunicação, que devem prezar pela transparência. O compromisso deve ser de proporcionar o bem-estar das pessoas e do planeta e ações levadas a cabo devem ser de fato sustentáveis e aumentar não só a riqueza material, mas o bem-estar coletivo, incluindo o de gerações futuras. 

Conforme atenta Dasgupta, uma reforma na medição do sucesso econômico é imprescindível. O uso do PIB é baseado em uma aplicação falha da economia, já que mede o fluxo de dinheiro, mas não o estoque de ativos nacionais. A introdução do capital natural nos sistemas de contabilidade nacional é, assim, fundamental para a obtenção da sustentabilidade. 

Recentes desdobramentos do caso da ExxonMobil trazem outra esperança de mudança de cenário: em junho de 2020, o procurador-geral de Minnesota, Keith Ellison, iniciou um processo contra a empresa, o Instituto Petrolífero dos EUA e as Indústrias Koch, acusadas de enganar o público sobre as mudanças climáticas. O processo judicial argumenta que "documentos internos antes desconhecidos confirmam que os réus entendiam bem os devastadores efeitos que seus produtos causavam no clima". A acusação afirma que, mesmo tendo esse conhecimento, as empresas "se engajaram em uma campanha de relações públicas não apenas falsa, mas também altamente eficiente", que serviu para "deliberadamente [sabotar] a ciência".

 


Revisão e edição: Anna Monteiro

Arte: Ronieri Gomes

 

Equipe de monitoramento

 

Anna Monteiro

Bruna Hassan

Camila Maranha

Denise Simões

Fabiana Fregona

Laura Cury

Mariana Pinho

Marília Albiero

Victoria Rabetim

 

Colaborou nesta edição: Adriana Carvalho, diretora jurídica ACT

 




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