Dependentes químicos buscam ajuda on-line para manter tratamento durante pandemia

12.05.20


O Globo

RIO — Há quatro anos, as reuniões do Alcoólicos Anônimos (AA) costuram a vida de Leon Trapani (o nome foi modificado para proteger seu anonimato). Já as frequentou no centro da cidade, em Copacabana, depois no centro de novo.

O escritor de 38 anos deixou de beber há dois anos e sete meses, e os encontros do AA são “uma questão de sobrevivência”.

— Preciso das reuniões para poder desabafar com pessoas que também passam pela mesma coisa, sobre situações que outros, que não têm esse problema, teriam dificuldade de compreender. É uma questão de empatia, de identificação. Preciso das reuniões não tanto pelo medo de beber, mas pelo medo de enlouquecer.

Em meados de março, tão logo começou a quarentena, isolado num apartamento em Copacabana com a mulher e os gatos, ele soube que as reuniões que costumava frequentar no centro haviam sido suspensas, para cumprir a regra de se evitar aglomerações durante a pandemia de coronavírus.

Soube, também, que elas haviam ganhado uma versão on-line. Passou a “frequentá-las” diariamente.

— Outro dia, no corujão, como a gente chama a última reunião (às 21h30), tinha 28 pessoas. Onde é que você tem 28 pessoas se ouvindo? Os mais velhos falavam menos, para dar mais tempos aos mais jovens. Eu mesmo falei só oito minutos. É de um nível de generosidade quase heroico alguém se dispor a te ouvir, sabendo que você vai contar a mesma história. É uma pausa no auto-apreço ouvir o outro — diz ele.

Para Trapani, as reuniões do AA cumprem duas funções: “Manter você diante de você mesmo, para que não se esqueça da própria história, e exercitar a gratidão ao receber outras pessoas que, como você, precisam de ajuda”.

— Participo de uma média de duas reuniões por dia, mas ontem fiz quatro. É tipo banho. Pelo menos um por dia, né? Ontem eu tomei quatro banhos — diz, sorrindo.

Cartilha para criação de reuniões virtuais

Sob as diretrizes do isolamento social, os grupos de AA pelo mundo trocaram as reuniões presenciais por encontros virtuais. Não há uma central que concentre os dados sobre esses grupos, que podem ser organizados por qualquer pessoa, sem custos, e usando qualquer ferramenta ou aplicativo na internet.

O Escritório Geral do AA para os EUA e o Canadá disponibilizou uma espécie de cartilha para guiar os que quiserem criar encontros virtuais, com informações sobre como resolver problemas técnicos ou, ainda, entender questões como o anonimato (as reuniões não podem ser gravadas, por exemplo).

O AA do Brasil divulgou relatório no último domingo, segundo o qual 20.532 pessoas participaram de 3.307 reuniões virtuais pelo país, desde 13 de março até 10 de maio, usando o Google Meet. Como os grupos são independentes e podem usar outros aplicativos, o número de reuniões on-line deve ser ainda maior.

Durante o isolamento, os encontros virtuais são uma alternativa para usuários de álcool e drogas, já que a reinserção social é parte importante do tratamento de dependência química.

Atividades em grupo ajudam a “ampliar o repertório social do sujeito, para que ele possa ocupar espaços sem estar intermediado pelo uso de substâncias”, explica a psiquiatra Nicola Worcman, especializada no tratamento de usuários de álcool e drogas.

— O tratamento de dependência química só funciona comprovadamente se for multidisciplinar. O plano individual terapêutico geralmente precisa incluir atividades coletivas, que desvinculem o paciente da relação que passa pela droga. Além disso, grupos terapêuticos trazem experiências muito enriquecedoras, permitem que o sujeito ouça estratégias de seus pares, numa ideia de certo pertencimento — explica Worcman.

Ela lembra que, em isolamento e num contexto de incertezas, “aumentam os sintomas psiquiátricos associados aos gatilhos de uso de substâncias”:

— A quantidade de informações que chegam a todo momento e a própria condição de isolamento são por si só ansiogênicas, e uma das estratégias do dependente químico para lidar com estresse é usar esta ou aquela substância. Por isso é muito comum que a pessoa percorra o mesmo caminho neste momento, e é preciso recorrer aos serviços especializados ou ao médico para não interromper tratamentos.

Centros de Atenção Psicossocial 24h

As consultas on-line são ferramentas importantes para manter o acompanhamento médico. Na rede pública de saúde, quem atende pelo serviço são os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, os chamados CapsAD.

São seis as unidades no Rio — quatro delas com funcionamento 24 horas, que foi mantido mesmo durante a pandemia. O atendimento prestado, no entanto, precisou ser adaptado para atender a regras da quarentena.

Superintendente de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde do Rio, Hugo Fagundes explica que, logo no início da pandemia, decidiu-se por cancelar as atividades coletivas dos CAPS, que tem na socialização — seja com grupos terapêuticos, seja em oficinas de geração de renda — um dos pilares de tratamento.

— Quando percebemos que seria necessário reduzir a convivência, recomendamos que as equipes não fizessem mais essas atividades. Isso é um problema para a gente, porque toda a saúde mental trabalha em processos coletivos. Buscamos formas de distanciamento e, paulatinamente, dispensamos os funcionários de maior vulnerabilidade, para reduzir o convívio. Cada profissional pegou uma lista de pacientes para seguir acompanhando, por telefone, por Skype, pelo que for possível — diz Fagundes.

 

Assim, em constante contato por telefone com o paciente e pessoas de seu convívio, o profissional pode monitorar o quadro e orientar a necessidade de ida ou não à unidade de atendimento.

'Está mais difícil viver'

No CapsAD Antônio Carlos Mussum, cuja área de atendimento abarca Jacarepaguá e Barra da Tijuca, dos 51 profissionais, apenas três estão trabalhando de casa, e os demais seguem na unidade e no território — muitas vezes, indo a locais de uso levando máscaras ou, ainda, visitando o paciente em casa, caso não atenda ao telefone.

— A gente tem utilizado mais estratégias para manter o acompanhamento dos usuários. Por mais que não tenham as atividades em grupo realizadas no Caps, todos seguem em tratamento. Não deixamos de atender ninguém — afirma Rogério Ferreira, diretor do CapsAD Mussum, onde profissionais de saúde fazem uma primeira triagem de pacientes logo na entrada, para descartar sintomas de coronavírus.

Em caso de consulta, o paciente é atendido nas áreas externas, e não mais fechado numa das salas. A procura pela unidade, como consequência da quarentena, caiu, segundo o diretor. Se em março foram 41 novos pacientes, em abril, o serviço registrou apenas 19.

Médica atende paciente no CapsAD Mussum, na Zona Oeste do Rio Foto: Divulgação
Médica atende paciente no CapsAD Mussum, na Zona Oeste do Rio Foto: Divulgação

— O que temos visto é um agravamento dos quadros, e não tanto mais casos, talvez por conta do próprio isolamento, que faz com que as pessoas evitem sair de casa. Mas a condição de vulnerabilidade de um usuário de drogas tende a se agravar neste momento. O sofrimento está maior. Tem um número relevante de pacientes relatando isso: está mais difícil viver.

https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-servico/dependentes-quimicos-buscam-ajuda-on-line-para-manter-tratamento-durante-pandemia-1-24411090




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