monitorACT | Edição Especial sobre Blackwashing

08.11.23


ACT Promoção da Saúde

 

Editorial

 

A consciência sobre o racismo vem aumentando nos últimos anos entre a população brasileira e, à medida que cresce, isso se reflete na maior representação de pessoas negras e uso de simbologias ligadas à cultura afro-brasileira em produções culturais, audiovisuais e campanhas de publicidade. 

Para entender melhor o que está por trás dessa questão, as pesquisadoras da área de nutrição Vitória Moraes e Letícia Portugal, da Universidade Federal Fluminense, estudaram o suposto compromisso das indústrias de produtos nocivos à saúde com o antirracismo e chegaram à conclusão de que se resume a táticas para aumentar suas vendas junto à população negra, que é também a mais acometida pelas doenças crônicas não-transmissíveis associadas com o uso de seus produtos, que incluem tabaco, bebidas alcoólicas e produtos ultraprocessados. O estudo gerou o Relatório Blackwashing, as corporações estão engajadas na pauta racial?, lançado pela ACT e desdobrado nesta edição.

O blackwashing é parte da famosa tentativa de reconstrução da imagem corporativa de algumas empresas ou de limpar suas reputações. Estratégias como essa também são vistas na área ambiental com o chamado greenwashing, que inclui práticas que dão uma falsa aparência de sustentabilidade, mas sem promover mudanças realmente efetivas. O blackwashing, por sua vez, acontece na área social e racial. Assim como no greenwashing, os achados mostram que as estratégias de blackwashing das empresas não passam de marketing, o que é grave, já que a publicidade de produtos nocivos direcionada a pessoas negras pode ser interpretada, inclusive, como publicidade abusiva, uma vez que estimula o consumo de produtos sabidamente prejudiciais à saúde por um grupo que já se encontra em maior situação de vulnerabilidade.

Em Nutricídio: adoecendo a população negra pela boca, Vitória apresenta alguns conceitos ligados à questão racial e mostra a relação entre a alimentação e a forma como a população negra está adoecendo por fatores de risco evitáveis.

Já Letícia Portugal, em Álcool, tabaco, racismo e outras drogas, aborda o fato de que o consumo de álcool e tabaco também atinge mais pessoas negras e vulneráveis e como as empresas fabricantes investem para ressignificar seus produtos, muitas vezes usando estratégias para vender mais junto à população em geral e a negra, em especial. 

Por fim, com Promessas demais, ações de menos, Vitória dá um mergulho na sigla que parece mágica: o ESG, usada para explicar ações corporativas supostamente voltadas para mitigar problemas no meio ambiente, na sustentabilidade e na governança e conclui: governos devem investir em políticas de combate estrutural ao racismo e garantir que a legislação trabalhista seja cumprida, além de regular as empresas e suas atividades, enquanto as corporações, por sua vez, devem respeitar as regras do jogo e se responsabilizar pelos efeitos de suas atividades sobre a população.  

 

Boa leitura, 

Anna Monteiro

Diretora de Comunicação

 



 

Nutricídio: adoecendo a população negra pela boca

Vitória Moraes

 

Na década de 1990, o médico Llaila Afrika criou o termo nutricídio, que representa a falta de acesso a alimentos saudáveis e adequados à cultura e realidade de determinado grupo populacional, complementado pelo recorte racial, uma vez que as pessoas negras são as mais atingidas. Em sua tese, Afrika traz dois pontos chaves para entender o nutricídio: a cultura alimentar imposta por colonizadores europeus em suas respectivas colônias, como é o caso dos países africanos e do próprio Brasil, e o baixo acesso de pessoas negras aos alimentos saudáveis, como frutas, legumes e vegetais, predominando o consumo de alimentos ultraprocessados. 

 

Nutricídio

 

Pensando na alimentação como protagonista na formação cultural de um povo, podemos concluir que a destruição de determinada cultura alimentar não significa só um acesso reduzido aos alimentos saudáveis, mas também violenta os costumes e modos de viver. A ameaça à biodiversidade alimentar é central na discussão sobre a construção de sistemas alimentares mais saudáveis, sustentáveis e equitativos, porém é uma questão que perpassa sem solução por toda a história do Brasil.

Mão-de-obra escrava, latifúndios, extermínio de povos originários, avanços sobre os biomas e controle econômico e político centrado nas mãos dos brancos europeus: desde a chegada dos portugueses, o Brasil teve suas terras destinadas ao cultivo e plantação de alimentos voltados para a exportação para atender aos interesses do mercado europeu, sem levar em consideração os modos de produzir e de se alimentar dos outros grupos que aqui viviam. Nesse caso, o alimento aparece como mais um instrumento de exercício de poder, com a desvalorização de outros saberes e a imposição de uma única visão de mundo e de um modo certo de se alimentar. É o que a nutricionista e socióloga da alimentação Elaine Azevedo chamou de colonização cultural alimentar: muito espaço destinado ao cultivo de alimentos regionais se perdeu para dar lugar às grandes plantações com fins de exportação e de servir de matéria prima para a indústria de alimentos. O avanço sobre territórios ameaça os diferentes modos de produzir e de se alimentar, tendo como principais vítimas as comunidades tradicionais, como os indígenas e quilombolas. 

A máxima da colonização da cultura alimentar se dá através do sistema alimentar agroindustrial, por meio do agronegócio e dos alimentos ultraprocessados. O agro produz commodities que são negociadas no mercado financeiro e utilizadas como base na fabricação de alimentos ultraprocessados, o que, por sua vez, traz impactos profundos para o meio ambiente, a saúde pública e a sociedade no geral, especialmente para grupos com menor representatividade política, como é o caso da população negra, que apresenta os piores indicadores de saúde, em especial no tocante à alimentação. 

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2019, a população negra correspondia a mais da metade (56,2%) do total da população brasileira, sendo que, desses, 15,1% possuíam diabetes, enquanto 48,7% apresentavam hipertensão. A relação entre o consumo de alimentos ultraprocessados e a prevalência e as mortes por doenças crônicas não transmissíveis é amplamente documentada e sustentada por evidências científicas robustas. Só no Brasil, estima-se que o consumo de ultraprocessados seja responsável por 57 mil mortes evitáveis ao ano, sem mencionar os prejuízos à saúde e ao bem-estar dos indivíduos. Dito isso, as pesquisas e inquéritos nacionais apontam para um maior consumo de alimentos e bebidas ultraprocessados por pessoas negras, em comparação com pessoas brancas. A Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 aponta que 28,6% da população negra consome regularmente alimentos açucarados, enquanto somente 15,7% da população branca referiu o mesmo hábito. Os dados também indicam que pessoas negras consomem menos frutas e hortaliças, praticam menos atividade física e possuem acesso reduzido aos serviços de cuidado em saúde, o que contribui para a alta prevalência de DCNTs entre os indivíduos deste grupo.

Outro ponto levantado por Afrika na tese do nutricídio está ancorado no fato de pessoas negras possuírem maior acesso aos alimentos de baixo valor nutricional, o que está ligado a uma série de outros fatores. Pessoas negras, em geral, ainda possuem menor renda e escolaridade e, consequentemente, estão alocadas em empregos com baixos salários e possuem menor poder de compra, o que pode dificultar a aquisição de alimentos saudáveis. Estudos também mostram que os desertos e pântanos alimentares, regiões com poucos pontos de venda de alimentos saudáveis e muita oferta de ultraprocessados, são habitados majoritariamente por pessoas negras, moldando ambientes extremamente desfavoráveis para a adoção de hábitos saudáveis

O atual entendimento sobre colonialismo traz as corporações como as grandes colonizadoras do século XXI, uma vez que são elas que, na maior parte das vezes, ditam as regras do jogo, concentram capital político e financeiro e moldam as escolhas alimentares ao redor do globo. No caso da alimentação, as grandes transnacionais de alimentos ampliam cada vez mais seus poderes por meio da expansão de suas marcas no mercado e de sua participação política em espaços de tomada de decisão, mesmo que isso signifique o enfraquecimento de políticas de interesse público, que são substanciais sobretudo para os grupos com baixa representatividade política. Quando se fala sobre reputação diante da opinião pública, no entanto, a indústria não perde uma oportunidade sequer de se engajar no assunto do momento e de se colocar como suposta aliada no enfrentamento de problemas causados e/ou acentuados por suas atividades.

Após a mobilização mundial do Movimento BlackLivesMatter, em resposta ao assassinato de George Floyd, um homem negro morto nos Estados Unidos por um policial branco, em 2020, cresceu a pressão pública pelo posicionamento das corporações em relação à equidade e representatividade racial em seus espaços. Com isso, a indústria de alimentos ultraprocessados passou a mostrar mais rostos negros e elementos da cultura afro-brasileira em suas propagandas, direcionando sua publicidade à população negra. O “Relatório blackwashing” mostra como Ambev, JBS, Nestlé, Carrefour e Coca-Cola ampliaram suas parcerias com influenciadores negros e passaram a engajar na pauta da diversidade. Diversas ações publicitárias de blackwashing foram desenvolvidas pelas corporações entre 2019 e 2021. Influenciadores negros foram utilizados nas propagandas da marca e propagandas foram veiculadas em novelas de transmissão nacional. Também houve casos de associações com organizações não-governamentais e institutos, para promover a aceleração de lideranças negras nos ambientes corporativos, e com intelectuais, como Celso Athayde e o atual ministro dos direitos humanos, Sílvio de Almeida. 

Aqui, é preciso ressaltar que as corporações que fabricam produtos ultraprocessados atuam de maneira incisiva no enfraquecimento de políticas regulatórias que buscam proteger a saúde e criar ambientes de promoção da alimentação saudável, como a tributação, a rotulagem, a restrição da oferta de ultraprocessados em ambientes como escolas e hospitais e, obviamente, a regulação da publicidade desses produtos. As táticas são antigas, o que muda é a roupagem. 

Precisamos prestar atenção à cooptação mercadológica e ao esvaziamento de pautas tão caras à sociedade, para então avançar com medidas efetivas de compreensão e enfrentamento de um problema tão complexo quanto o racismo. Vigiar e agir, para que amanhã não seja só um ontem com um novo nome. 

 



 

Álcool, tabaco, racismo e outras drogas

Letícia Portugal

 

No Brasil e no mundo, o consumo de álcool é hiper estimulado pelas corporações através de campanhas de marketing e associações com um estilo de vida despojado. Existem diferentes motivos que levam as pessoas a consumirem bebidas alcoólicas, dentre eles a interação social e aspectos culturais. Diante de um mercado consumidor com enorme potencial, as campanhas de publicidade servem não só para  aumentar a venda, como para promover cada vez mais produtos e estilos de vida nocivos à saúde. O relatório “The Sobering Truth: Incentivizing Alcohol Death and Disability, a NCD Policy”, lançado pela Vital Strategies em 2020, aponta que a Ab InBev investiu aproximadamente US$ 6,2 bilhões em ações de marketing e publicidade, o nono maior investimento em campanhas publicitárias no mundo.

Cabe destacar que, com maior fiscalização em países desenvolvidos, as fabricantes direcionam cada vez mais suas ações para países subdesenvolvidos e que apresentam menores rendas per capita e maiores brechas regulatórias. A Organização Pan-Americana de Saúde aponta que o Brasil é o terceiro maior consumidor de cerveja no mundo e, marcas como Brahma e Skol, ambas comercializadas pela Ambev, estão entre as mais consumidas no país. O levantamento “Afroconsumo”, realizado pela empresa Etnus, por sua vez, aponta que, além da cerveja, a catuaba, o vinho, a vodka, a cachaça e o uísque são as bebidas alcoólicas mais consumidas pela população negra no Brasil.

No Brasil, o consumo de bebidas alcoólicas é monitorado por inquéritos nacionais de saúde e por organizações sociais que buscam promover estilos de vida saudáveis e sustentáveis. Os dados do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico, o Vigitel, apontam que 19,2% da população negra consome álcool de forma abusiva, comparado com 16,6% da população branca. Além do recorte racial, é necessário realizar o recorte de gênero: mulheres negras, que são afetadas por condicionantes prejudiciais à saúde, estão mais vulneráveis ao consumo abusivo do álcool e aos seus efeitos prejudiciais à saúde. 

Outro produto que afeta a saúde da população brasileira e mundial é o tabaco. Em muitos países, assim como no Brasil, as ações de marketing e divulgação dos produtos são reguladas e barreiras de venda dos seus produtos são impostas às corporações. Assim, visando atingir novos públicos, elas vêm promovendo mudanças nos produtos desenvolvidos, e a nova aposta são os dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs). Apesar de ilegais no Brasil, são facilmente encontrados em tabacarias e lojas especializadas e disseminados por meio de influenciadores. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (2019), a prevalência do tabagismo também é maior entre pretos e pardos, sendo em pretos 13,7%, 13,5% em pardos e 11,8% em brancos. Baixa escolaridade, menor renda e menor urbanização são fatores de risco para o tabagismo no Brasil - ou seja, ao que tudo indica, quanto mais negro e mais pobre, maiores são as chances de ser fumante no país. 

O consumo abusivo de álcool, tabaco e outras drogas ilícitas está diretamente associado ao adoecimento da população negra, que não coincidentemente é aquela que apresenta os menores indicadores de acesso à saúde e lazer. O consumo dessas substâncias de forma rotineira é responsável por alterações no humor, nas relações sociais e em outros aspectos da vida da população negra. O panorama é agravado quando olhamos para as políticas de saúde e prevenção que existem no Brasil. Desde 2005, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) visa a promoção de saúde da população a fim de promover equidade nos acessos à saúde, porém sua implementação não é realizada no país e poucos são os locais que oferecem atendimento de saúde de forma efetiva para a população negra.

Diante de todas as fragilidades e nuances percebidas no cotidiano do negro brasileiro, vale a pena destacar como as grandes fabricantes de bebidas alcóolicas vêm direcionando suas campanhas publicitárias para as pessoas negras. O “Relatório Blackwashing” mostra como simbolos da cultura afro-brasileira e parcerias com influenciadores negros têm sido usados para promoção de bebidas alcoólicas. Um dos casos mais emblemáticos levantados é o da cerveja Devassa, que possui um histórico de processos por injúria racial devido a uma propaganda de cerveja preta, em 2012. Após ser comprada pela Heineken, a Devassa passou por um processo de rebranding, onde assumiu sua nova identidade, de uma cerveja tropical. A marca, então, passou a se posicionar como uma enaltecedora da ancestralidade e da cultura negra, com uma série de participações em festivais de músicas que compõem o imaginário do negro brasileiro, como o samba e o axé music, além de trazer termos antes restritos aos espaços de debate racial e expressões da cultura negra, como o conceito de afrofuturismo. 

O rebranding da Devassa, entretanto, foi pensado e executado quase que exclusivamente por pessoas brancas. Pesquisando sobre a CBA B+G, agência responsável pelo novo posicionamento da marca, podemos observar a predominância de funcionários brancos no time divulgado em seu próprio site. Ademais, para além da Devassa, os grandes líderes de publicidade da Heineken são pessoas brancas, o que nos faz refletir sobre toda a complexidade de se ter pessoas brancas promovendo produtos extremamente prejudiciais à saúde para pessoas negras. Cabe lembrar que, além dos problemas de saúde, o consumo abusivo de álcool também potencializa outras injúrias, como os acidentes de trânsito e o aumento da violência doméstica. 

No caso da cerveja, o estímulo ao consumo se dá não só pela propaganda em si, mas também pelos baixos preços e a facilidade de capilarização na distribuição e comercialização do produto país afora, além de incentivos fiscais e acordos com governos estaduais

Diferentemente dos resultados encontrados para as empresas do álcool, as empresas do tabaco não desenvolveram ações de blackwashing. Uma indústria que tem em sua história a servidão e o trabalho análogo à escravidão, com casos recentes em plantações fumageiras no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, além do consumo exacerbado de cigarros por parte da população negra, não desenvolver nenhuma ação de blackwashing desperta alguns questionamentos. Um deles é se as empresas não desenvolvem essas ações porque elas estão ligadas ao marketing, que no Brasil é restrito por lei para marcas de cigarro, e outro é a não adesão da indústria do tabaco às pautas de demanda social e o quanto está preocupada com posicionamentos críticos da sociedade.

O álcool e o tabaco aparecem em lugares importantes da história da cultura afro-brasileira, sendo elementos ritualísticos de religiões de matriz africana, inclusive. No entanto, o tabaco utilizado pelos ancestrais não continham uma gama de substâncias tóxicas ao corpo humano, tampouco eram produzidos em cadeias que trazem impactos extremamente prejudiciais à sociedade, sobretudo àqueles que estão à margem. O cenário atual é marcado pela cooptação, apropriação e ressignificação desses elementos, de maneira que eles passaram a representar verdadeiras armas para a população negra, enquanto conferem lucros estratosféricos para uma minoria branca. Os dados não nos deixam mentir: o consumo exagerado de álcool e o tabagismo matam mais pessoas negras.

Por isso, é urgente que sejam pensadas políticas que articulem as interseccionalidades com os comportamentos prejudiciais à saúde, além da adoção de medidas regulatórias mais rígidas, como a restrição da publicidade de bebidas alcoólicas, assim como foi feito com o tabaco. 

 


 

Promessas demais, ações de menos

Vitória Moraes

 

Environmental, Social and Governance (ESG) é a sigla do momento. Ela engloba uma série de iniciativas ambientais, sociais e de governança desenvolvidas por corporações  que agregam valor de longo prazo revertido em atração por mais investimentos e, consequentemente, geração de lucro.

Através do ESG, acionistas participam de negociações, e assim, das discussões a respeito da responsabilização das corporações nos processos danosos à saúde pública e planetária, além de seus impactos no tensionamento das desigualdades sociais. Podemos lê-lo como um rebranding da conhecida RSC, a responsabilidade social corporativa, com participação ativa de acionistas e com uma série de iniciativas voluntárias que muitas vezes são utilizadas como ferramenta de manejo da reputação corporativa diante da opinião pública, culminando no que chamamos de washings, como o greenwashing, o socialwashing e, agora, o blackwashing.

 

 

Essa tendência fez com que muitas empresas entrassem no jogo e assumissem novos compromissos com a construção de um mundo mais sustentável, tanto na questão ambiental quanto na questão social. Entretanto, existe uma distância entre o dizer e o fazer. Tanto as iniciativas como a divulgação de resultados são voluntárias, e não existe um padrão de divulgação dos dados, tampouco evidências de que os indicadores utilizados nos relatórios são realmente adequados para avaliar a performance em políticas de ESG  de uma determinada empresa. Dessa forma, é praticamente impossível comparar as atividades realizadas por uma mesma corporação ao longo do tempo, assim como a comparação entre diferentes empresas de um mesmo setor. Em entrevista a O Joio e O Trigo, a pesquisadora da FGV Melissa Velasco Schleich afirmou que muitas companhias divulgam seus feitos em ESG sem passar por nenhum tipo de certificação ou asseguração de terceiros, o que diminui consideravelmente a confiabilidade da informação.

No que diz respeito à questão da equidade racial, para além das peças publicitárias, o “Relatório Blackwashing” analisou metas e compromissos assumidos pelas fabricantes de produtos ultraprocessados, bebidas alcoólicas e tabaco na construção de ambientes corporativos mais equitativos, além de ações de letramento racial entre seus funcionários. O critério de inclusão das corporações a serem investigadas foi justamente a adesão ao Mover - Movimento pela Equidade Racial, assinado por mais de 40 empresas de diferentes setores, incluindo o setor de alimentos e bebidas alcóolicas. Segundo o site, seu objetivo é a aceleração de processos de diversidade, equidade e inclusão dentro das empresas, além do investimento social coletivo voltado à criação de impacto positivo na educação, geração de emprego e na conscientização da sociedade quanto ao racismo. O Movimento anuncia uma série de iniciativas de contratação, letramento, conscientização e promoção de ambientes corporativos mais inclusivos, além da realização de eventos e prêmios para as empresas mais comprometidas com a causa racial.

O "Relatório Blackwashing" analisa alguns casos emblemáticos, como a “Mentoria Reversa”, ação de letramento racial proposta pela Coca-Cola em 2019. Na ocasião, pessoas negras de cargos mais baixos na hierarquia corporativa conversavam sobre a agenda racial com os vice-presidentes da empresa. Segundo a política da empresa, essa seria uma forma de mostrar a importância de reduzir o racismo e de ser pró-inclusão e diversidade. No entanto, colocar pessoas de cargos mais baixos para explicar o racismo para seus superiores só reafirma a posição de inferioridade perante a hierarquia corporativa, reforça a posição de pessoas negras em locais de serventia e é de uma indelicadeza profunda, além de não enfrentar a raiz do problema. O relatório mostra que, após a repercussão mundial das manifestações do BlackLivesMatter, muitas empresas passaram a investir na criação de grupos de afinidade para os funcionários negros, além da contratação de mais pessoas negras para suas respectivas equipes. No entanto, a maior parte dos programas de recrutamento anunciados se restringiu aos cargos de menor salário e mais baixos na hierarquia da corporação, como programas de estágio e trainee.

Apesar das ações discursivas e práticas adotadas pelas corporações do setor, reportagem do Alma Preta para O Joio e O Trigo mostrou que os negros ainda são minoria em cargos de liderança, além de receberem menores salários, fazendo com que não haja mudança efetiva na cultura da empresa. Profissionais negros estão geralmente alocados em cargos operacionais, o que representa um grande contingente de trabalhadores com baixa remuneração salarial e muitas vezes atravessados pela violação de direitos trabalhistas e humanos. O "Relatório Blackwashing" também apontou para a ausência de canais de denúncia e de respaldo judicial em casos de injúria racial, uma vez que nenhuma das corporações analisadas relatou a existências de tais ferramentas em seus relatórios corporativos e páginas oficiais. 

De maneira semelhante, um artigo produzido no Reino Unido analisou as ações propostas pelas corporações para promover a equidade de gênero e concluiu que a maior parte delas pouco tocam na questão das iniquidades, que as campanhas anunciadas geralmente escondem a inação em outras frentes importantes e que a criação de programas de estágio e trainee são, em sua grande maioria, ineficientes na promoção de equidade dentro do ambiente corporativo. Os autores também afirmam que as empresas se utilizam de narrativas para se posicionar como líderes em determinada pauta, a fim de omitir um histórico de posturas e condutas questionáveis, como é o caso da criação de programas de promoção da equidade racial pelo Carrefour após ao assassinato de João Alberto Freitas, um homem negro, em uma de suas unidades na cidade de Porto Alegre (RS).

Tantas nuances trazem à tona a necessidade da criação de medidas regulatórias rígidas, que tirem tais iniciativas da natureza da voluntariedade e de fato responsabilizem as corporações por sua influência no tensionamento das desigualdades sociais e das relações de opressão.

Vale ressaltar também que muitas dessas empresas carregam casos e mais casos de denúncia por assédio moral, discriminação, violação de direitos humanos e trabalhistas e uso de mão de obra análoga à escravidão ao longo de suas cadeias de produção e distribuição, especialmente em países de média e baixa renda, onde a tendência é haver mais brechas regulatórias.

Embora aleguem anseios para alcançar a equidade racial, as metas em geral são pouco explicativas e os documentos que tratam da pauta, vagos. Como seus valores são fincados em manuais corporativos de visão liberal e ocidental, a perspectiva de mundo é unificada. No fundo, pobreza e racismo sempre geraram lucros, e, agora, o combate ao racismo também virou um produto. 

Por isso, os governos devem investir em políticas de combate estrutural ao racismo e garantir que a legislação trabalhista seja cumprida, além de regular as empresas e suas atividades, que impactam principalmente a vida daqueles que estão à margem da sociedade. As corporações, por sua vez, devem respeitar as regras do jogo e se responsabilizar pelos efeitos de suas atividades sobre a população. Por fim, é preciso considerar e valorizar outras perspectivas de mundo, outros modos de fazer ciência e fortalecer os movimentos sociais que estão na linha de frente do combate ao racismo.

 



 

FICHA TÉCNICA

 

MonitorACT

Revisão e edição por Anna Monteiro

Produção gráfica de Ronieri Gomes

 

Equipe de monitoramento

Anna Monteiro

Bruna Hassan

Denise Simões

Fabiana Fregona

Laura Cury

Mariana Pinho

Marília Albiero

Victória Rabetim

Vitória Moraes

 

Equipe de produção do Relatório Blackwashing

Camila Maranha

Camila de Paula

Letícia Portugal

Vitória Moraes

 




VOLTAR



Campanhas



Faça parte

REDE PROMOÇÃO DA SAÚDE

Um dos objetivos da ACT é consolidar uma rede formada por representantes da sociedade civil interessados em políticas públicas de promoção da saúde a fim de multiplicar a causa.


CADASTRE-SE