'O exercício é uma terapia para o cérebro', afirma neurocientista

23.08.21


O Globo

RIO — A descoberta de que exercícios protegem e preservam a memória deu à cientista brasileira Fernanda De Felice o mais prestigioso prêmio do mundo na pesquisa do Alzheimer. De Felice é a primeira brasileira a receber o Prêmio Inge Grundke-Iqbal, concedido pela Associação Internacional sobre a Doença de Alzheimer ao pesquisador principal do artigo de maior impacto na área publicado nos últimos dois anos.

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A pesquisa, publicada na revista científica Nature Medicine em 2019, revelou que a irisina, um hormônio produzido pelos músculos durante os exercícios, protege o cérebro e restaura a memória afetada pelo Alzheimer.

O trabalho abriu caminho para estabelecer mudanças de estilo de vida que ajudam na prevenção. Também pavimentou uma via para o desenvolvimento de novas terapias contra a doença neurodegenerativa que mais avança no mundo.

De Felice, neurocientista do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Queen’s University (Canadá), investiga agora qual a melhor forma de aumentar os níveis de irisina e, assim, proteger e conservar a memória.

Por que a pesquisa teve tamanha repercussão?

Principalmente porque ela comprovou que existe uma conexão entre a atividade muscular e a função cerebral. A irisina é liberada pelos músculos em resposta ao exercício. E ela ativa mecanismos no cérebro ligados ao funcionamento dos neurônios, à formação e à retenção da memória.

Por que decidiu investigar a irisina contra o Alzheimer?

O carro-chefe do meu laboratório é a investigação dos efeitos de hormônios sobre a doença de Alzheimer e as demências de forma geral. Há 15 anos comecei a pesquisar o papel da insulina. Ela foi descoberta há exatos cem anos, ainda assim, até há 15 anos não se sabia se atuava no cérebro. A exceção era o hipotálamo, que tem funções associadas ao metabolismo. Descobrimos que havia uma diminuição da sinalização de insulina no cérebro de pessoas com Alzheimer. Foi um achado pioneiro. A partir daí, investigamos um outro hormônio chamado GLP-1.

O que é o GLP-1?

É um hormônio liberado pelo intestino e com funções no metabolismo. Mas vimos que ele também tem efeitos na proteção do sistema nervoso.

Como chegaram à irisina?

Quando a irisina foi descoberta, percebi que poderia ter muita importância também para o cérebro e decidi investigar.

Como o hormônio atua contra o Alzheimer?

A irisina está relacionada ao aumento de uma molécula chamada BDNF, estimulada pelo exercício (a BDNF é fundamental para a sobrevivência dos neurônios e a aquisição e consolidação de memórias). Mostramos pela primeira vez que os níveis da irisina são menores no cérebro de pacientes com Alzheimer. E vimos que isso também acontecia com modelos animais, camundongos transgênicos que têm problemas de aprendizado e memória. Observamos que, quando aumentávamos a irisina, conseguíamos recuperar a memória e a capacidade de aprendizado.

Por que a atividade física é tão importante para o cérebro?

Gosto de pensar no cérebro como um ecossistema, sensível a mudanças ao longo da vida. Ele é como a Amazônia, que se desequilibra com a perda de diversidade. No caso do cérebro, o desequilíbrio é consequência de um somatório de fatores biológicos e sociais. As pessoas costumam imaginar a doença de Alzheimer como um mal da velhice, mas ela é resultado de um acúmulo de fatores, como estresse, inflamação, atividade física, alimentação.

Que impacto o exercício tem nesse órgão?

Os exercícios são uma terapia completa. Melhoram a vascularização do cérebro, o aporte de oxigênio. E têm muitas outras funções benéficas para todo o corpo. Impactam a microbiota (os microrganismos benéficos que vivem em nosso corpo), os ossos, estimulam metabolismo, e tudo isso chega ao cérebro. A atuação pode ser indireta, por meio da ação em outras partes do corpo. Mas também direta, como no caso do BDNF e da irisina.

O que o grupo investiga agora?

Temos duas frentes de estudo. Uma é descobrir drogas que podem aumentar os níveis de irisina. Temos investigado isso usando terapia gênica em camundongos. Eles são geneticamente alterados para produzir uma quantidade maior do hormônio.

Há outra frente de estudo?

Procuramos identificar qual o melhor exercício e em que quantidade para estimular os músculos a liberarem mais irisina. Sabemos que atividades muito intensas têm esse efeito. Mas buscamos exercícios mais leves e atividades físicas cotidianas, que possam ser executadas por qualquer um.

Em que fase da vida exercícios são mais importantes?

Por toda a vida. Nunca é tarde demais para começar e obter ganhos. Mas é claro que o ideal é prevenir. É preciso começar a se exercitar ainda criança e incorporar a atividade física à rotina. Recorro mais uma vez à analogia com a Floresta Amazônica. Você pode tentar reflorestar, mas isso será muito mais difícil do que preservar as árvores. E é isso que o exercício faz no cérebro. Ele preserva os neurônios, as funções cerebrais.

A irisina pode combater os efeitos do envelhecimento?

Essa é uma possibilidade. Como outros tantos hormônios, a irisina é complexa e ainda começamos a entender todos os seus efeitos e mecanismos.

Existem outras perspectivas farmacológicas contra o Alzheimer?

Nossos estudos são muito usados para embasar testes clínicos de drogas que atuam sobre a insulina e o GLP-1 no tratamento do Alzheimer, com resultados muito interessantes. São drogas contra o diabetes, mas que têm efeitos importantes na sensibilidade à insulina no cérebro.

Quais são as maiores dificuldades das pesquisas?

Financiamento é a maior dificuldade desse tipo de pesquisa. Elas têm custo muito elevado e os recursos no Brasil vêm diminuindo. O mais desafiador é conseguir manter os recursos e seguir em frente.

https://oglobo.globo.com/saude/bem-estar/o-exercicio-uma-terapia-para-cerebro-afirma-neurocientista-25165108




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