O império da embriaguez

04.05.23


Por Laura Cury e Cláudio Fernandes | Folha de São Paulo

O consumo abusivo de bebidas alcoólicas é um problema de saúde pública que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, inclusive no Brasil. O consumo de álcool está associado a uma série de doenças, incluindo doenças do fígado, hipertensão, diabetes, depressão e câncer, além de estar também relacionado a acidentes de trânsito, violência pessoal e interpessoal e outros comportamentos perigosos. Uma maneira eficaz de reduzir o consumo de bebidas alcoólicas é através do aumento de preços, tema em discussão na atual reforma tributária e debatido em pesquisa recente da ACT Promoção da Saúde.

Além dos fatores de saúde, há também o que vem sendo denominado de "determinantes comerciais da saúde", com o aval da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Banco Mundial, que são atividades normalizadas para criar estímulo ao consumo de determinados produtos, mesmo que eles sejam prejudiciais e provoquem efeitos negativos à saúde, ao meio ambiente ou à sociedade como um todo. A indústria de bebidas alcoólicas, por exemplo, investe fortemente em medidas como publicidade e marketing e preços baixos, visando o aumento de vendas e do consumo de seus produtos, que são capazes de levar à dependência, doenças e até mesmo à morte, especialmente entre as populações jovens e mais vulneráveis.

Diversos determinantes comerciais e sociais da saúde são discutidos em profundidade no relatório Álcool, Obstáculo para o Desenvolvimento Sustentável, da ONG Movendi Internacional. O documento analisa o consumo de bebida alcoólica desde seu aspecto individual e psicológico até seu poderoso enraizamento econômico e seus galhos de oligopólio. O relatório demonstra ainda como a indústria de bebida alcoólica constitui um império global em posse de tremendo capital financeiro e cultural com influência incontestável sobre a vida de bilhões de pessoas no mundo todo.

Embora os efeitos do álcool no corpo humano sejam conhecidos há milênios, a escala industrial da produção e distribuição de bebidas alcoólicas confere nova e complicada dimensão à questão de seu consumo. Em nossa sociedade contemporânea, comemorar envolve embriaguez. Socializar envolve embriaguez. O patrocínio do esporte envolve embriaguez, o financiamento da cultura, idem. Fica a noção de que a alegria e a conquista estão diretamente associadas ao consumo de álcool. Estamos tão acostumados a esse fato que tentativas de regulação desse setor são encaradas com antipatia e explosões de irracionalismo.

De acordo com levantamento da Vital Strategies a partir de dados extraídos do Sistemas de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, o aumento no consumo de bebidas alcoólicas durante a pandemia levou, na cidade de São Paulo, por exemplo, a um crescimento de 150% de mortes por transtornos mentais ou comportamentais. No estado, o salto foi de 64,5% e no país de 18,4%. Já a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2019, mostrou que quase metade dos adolescentes já consumiu bebida alcoólica. Vale destacar que, para fins da legislação que controla a publicidade e propaganda de bebidas alcoólicas, cerveja, ices e outras bebidas com menor teor alcoólico não se enquadram na categoria de álcool. Na prática, isso as isenta de qualquer regulação apropriada dessas ações.

TRIBUTAÇÃO SELETIVA É UM AVANÇO PARA REDUZIR CONSUMO ABUSIVO DE BEBIDAS ALCOÓLICAS

A tributação seletiva sobre todas as formas de bebidas alcoólicas é comprovada por estudos do Banco Mundial, ratificados pela OMS, como a medida mais custo-efetiva para reduzir a prevalência do seu consumo de forma danosa. Sua adoção ainda seria capaz de arrecadar recursos para ações de prevenção e tratamento de saúde, financiando importante pilar do desenvolvimento sustentável. Em um momento em que a ministra da Saúde, Nísia Trindade, reforça o comprometimento do governo federal com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU), o caminho da tributação seletiva do álcool é um passo necessário para comprovar tal compromisso. As discussões em andamento sobre a reforma tributária possibilitam a aprovação de medidas concretas nesse sentido.

E antes que haja o retorno do argumento de que haveria desemprego na indústria, lembremos das horas de produtividade desperdiçadas por ressaca, doença, dos acidentes de trânsito, das violências e das milhares de mortes que poderiam ser evitadas todos os anos, se houvesse um consumo de álcool mais consciente e reduzido. Portanto, para que o respeito a essa histórica substância psicotrópica seja recuperado, honestidade e controle, que podem ser promovidos por meio da tributação majorada, são o caminho adequado para a maturidade, tanto social quanto individual, na trilha do desenvolvimento sustentável.

Claudio Fernandes é economista sênior do GT Agenda 2030; Laura Cury é coordenadora do projeto álcool da ACT Promoção da Saúde.

https://www1.folha.uol.com.br/blogs/saude-em-publico/2023/05/o-imperio-da-embriaguez.shtml




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