O último a sair apagou a luz

26.01.22


O Globo

Craque Neto 10 - O último a sair apaga a luz! Mas que luz???

Em 1973, auge da ditadura militar no Brasil, o então presidente, general Médici, lançou o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Imediatamente, o jornalista Ivan Lessa devolveu com uma resposta sarcástica, até hoje usada como bordão: “O último que sair apaga a luz do aeroporto”. Quase 50 anos depois, em meio a uma gestão federal notadamente militarizada, sob a chancela de uma frágil democracia, a história parece se repetir. E pasmem: alguém de fato apagou a luz.

Desde dezembro de 2021, o Brasil vive uma situação grave: após uma invasão de hacker que atingiu a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), diversos sistemas de informação do Ministério da Saúde permaneceram fora do ar. Incluem-se nessa lista os principais sistemas de monitoramento da Covid-19, como o e-SUS Notifica, o SIVEP-Gripe e o SI-PNI, que reúnem, respectivamente, informações sobre casos leves de Covid-19, internações por síndrome respiratória aguda grave (incluindo influenza e Covid-19) e vacinação.

O apagão ocorre num momento delicado de epidemia por influenza concomitante à transmissão comunitária de uma variante mais infecciosa do Sars-CoV-2, a Ômicron. Na primeira atualização após o apagão de dados, com retorno parcial de alguns sistemas, boletins como os do Observatório Covid-19 da Fiocruz indicam aumento expressivo de casos, da procura por testagem e da demanda por leitos de UTI em todo o Brasil. Hoje, ainda há atualizações irregulares, instabilidade de acesso e indisponibilidade de alguns dados. Mais de 40 dias de ausência de informação clara não nos permitiu o preparo adequado para este cenário. O resultado é um escalonamento da taxa de ocupação de leitos, insuficiência de testes nas unidades de atenção primária e longas filas de espera por atendimento. É o maior indício de fracasso de um governo que nega a ciência num momento em que mais precisamos dela.

Há uma correspondência inequívoca entre as necessidades do planejamento de Estado e a produção e divulgação de dados. Prova disso é o esforço de cada país em ter uma estrutura que gerencia seus dados, o Sistema Estatístico Nacional. Esse sistema, vale mencionar, é normatizado ainda pela Comissão de Estatística das Nações Unidas, quando essa organização estabelece os princípios fundamentais das estatísticas oficiais. Eles refletem os valores com os quais as estatísticas devem ser guardadas e disponibilizadas, tratadas como um patrimônio nacional. Um Estado signatário da ONU que não trata isso como prioridade age com dolo, negando uma prerrogativa internacional de acesso à informação para a ação.

A produção de estatísticas públicas é o que permite que um país compreenda a dimensão e a peculiaridade dos seus problemas. Isso dá o tom do tipo e do momento da intervenção que o Estado poderá empreender. Sem isso, as decisões são tomadas com base na experiência de outros países, descontextualizadas das particularidades locais. No limite, perde-se a soberania nacional. Prevalece a especulação sobre a robustez de análises de dados. Investem-se tempo e (parcos) recursos sem qualquer garantia de retorno para a mitigação da pandemia, incluindo a redução das iniquidades que provocam e são provocadas por ela.

Toda política pública tem por princípio a redução das iniquidades. Qualquer desordem que impeça a sua formulação trabalha em favor de aumentar as disparidades subnacionais. Ao assumirmos que as estatísticas públicas são indispensáveis à boa política, resta questionar, portanto, que tipo de Estado este governo pretende construir.

*Epidemiologista e demógrafo, é pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública e do Observatório Covid-19/Fiocruz

 

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/o-ultimo-sair-apagou-luz.html




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