Poluição, de ‘mal necessário’ para o progresso a retrato do atraso

20.10.21


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SUJEIRA NO AR E NA TERRA - Usina siderúrgica na China: índice de emissão de poluentes e resíduos além do aceitável -
SUJEIRA NO AR E NA TERRA - Usina siderúrgica na China: índice de emissão de poluentes e resíduos além do aceitável - Kevin Frayer/Getty Images

Hipócrates, o pai da medicina moderna, já discorria sobre os problemas de saúde causados pela poluição do ar e da água em seu tratado Dos Ares, Águas e Lugares, escrito no fim do século V a.C. A Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra em meados do século XVIII, elevou a emissão de gases e substâncias tóxicas na natureza a patamares nunca antes experimentados. Foram as fábricas nos centros urbanos que impulsionaram o enriquecimento do Ocidente, ao mesmo tempo que emporcalharam tudo a seu redor. Até hoje, quando governantes e ONGs se encontram para discutir cuidados com o meio ambiente, as cobranças mais intensas recaem sobre as regiões mais desenvolvidas da Europa e América.

Uma rápida olhada nos rankings de países mais poluidores do planeta, porém, revela que os vilões da natureza — e da própria saúde — não são mais os mesmos. Dos dez países com maior número de mortes por problemas decorrentes do ar sujo no mundo, segundo a plataforma suíça de monitoramento IQAir, sete estão na Ásia. O padrão se repete nas diversas listas de maiores poluidores, seja por partículas suspensas no ar, gases tóxicos, metais pesados nos aquíferos ou a medida que for. Se no século passado era possível fazer uma associação entre progresso e poluição, ao menos quando se falava de nações — nos centros urbanos, as áreas mais pobres sempre foram as mais contaminadas —, hoje a situação é inversa.

Na Índia, que tem treze entre as quinze cidades de ar mais sujo no planeta, as origens da fuligem são o retrato do atraso. Lá é comum queimar o lixo na rua por falta de uma coleta organizada. Blecautes frequentes tornam corriqueiro o uso de geradores a diesel nas áreas mais abastadas. Nas mais pobres, a solução para a cozinha e o aquecimento é colocar fogo em madeira, carvão, esterco, plástico ou qualquer material que mantenha a chama acesa. No outono, nuvens de fumaça cobrem a capital, Nova Delhi, oriundas de queimadas nos arredores. Enquanto vários países do Ocidente, incluindo cidades brasileiras como São Paulo e Rio de Janeiro, proíbem ou dificultaram o uso de sacolas e canudos plásticos para tentar diminuir seu descarte na natureza, a quantidade de material derivado de petróleo nos oceanos segue praticamente inalterada. Cientistas do Centro de Pesquisa Ambiental Helmholtz, na Alemanha, descobriram em 2018 que apenas dez rios — dois deles na África e oito na Ásia — despejam 90% de todo o plástico nos mares em todo o mundo. Só o Rio Yangtzé, ou Rio Azul, na China, é responsável por jogar 1,5 tonelada do material por ano no Oceano Pacífico.

É natural, e legítimo, que todas as atenções estejam hoje voltadas para a pandemia de uma nova doença ainda sem uma cura infalível, que já matou quase 5 milhões de pessoas. Mas a poluição do ar contribui para 7 milhões de mortes prematuras por ano, metade delas de crianças, segundo a Organização Mundial da Saúde. Outras organizações dão números ainda mais alarmantes. Cientistas vêm descobrindo cada vez mais males trazidos pelas partículas suspensas no ar, que penetram inicialmente no sistema respiratório, mas dali entram na corrente sanguínea e com o tempo se alojam e prejudicam todos os tecidos do corpo humano (e também de animais). Há uma correlação direta entre a queda na qualidade do ar de uma cidade e o aumento entre sua população nos casos e na gravidade de doenças tão díspares como Alzheimer, cegueira e toda uma lista de cânceres no pulmão, bexiga, estômago, cólon e rins. Também ataques cardíacos e enfermidades autoimunes. E, finalmente, estudos preliminares estimam que a exposição prolongada à poluição no ar seja responsável por 7% a 33% das mortes por Covid-19. A emergência do tema não pode ser superdimensionada.

O aquecimento global e a poluição do ar dividem as mesmas causas e as mesmas soluções, mas têm dinâmicas muito diferentes. Enquanto a temperatura do planeta sobe vagarosa e consistentemente, as partículas do ar podem sumir de uma hora para outra. E, mais importante, quando isso acontece, os efeitos na saúde são percebidos de imediato. A suspensão abrupta da atividade econômica e da locomoção em geral no início de 2020 devido à pandemia de Covid-19 não alterou a quantidade de CO2 na atmosfera e a temperatura seguiu em tendência de alta. Em compensação, os níveis de partículas no ar e de gases como dióxido de nitrogênio caíram ao redor do globo, e o número de ataques de asma, paradas cardíacas e mortes desabou igualmente. Um estudo realizado na China concluiu que mais de 9 000 vidas foram salvas no país pela melhora na qualidade do ar. O fenômeno não deveria ser encarado com surpresa pelos cientistas, que já sabem dos efeitos deletérios da poluição pelo menos desde Hipócrates, mas ver um experimento natural de proporção planetária pela primeira vez deixou a comunidade acadêmica estupefata.

 

https://veja.abril.com.br/agenda-verde/poluicao-de-mal-necessario-para-o-progresso-a-retrato-do-atraso/




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