'Ultraprocessados do bem': ideia tão vazia quanto esses alimentos

01.08.23


Folha de São Paulo

A área da nutrição tem um clichê tão frequente que virou piada. Ovo faz mal? Respostas a perguntas como essa vão sempre variar, dando a impressão de que alimentos específicos são ora benéficos, ora maléficos. Isso porque estudos que avaliam o efeito de alimentos isolados na saúde não têm reflexo na realidade. Não os comemos isoladamente, mas combinados em refeições. Por isso, a epidemiologia nutricional se dedica à análise de padrões alimentares.

A ciência tem mostrado que o padrão alimentar baseado em ultraprocessados está associado a um maior risco de desenvolvimento de doenças crônicas. Diabetes e hipertensão são exemplos. Trata-se de um conhecimento estabelecido e que influencia políticas públicas, como na recente lei que proíbe a venda de ultraprocessados nas escolas da cidade do Rio de Janeiro.

Alimentos ultraprocessados - biscoitos, batata frita, sorvete
Exemplos de alimentos ultraprocessados: biscoitos recheados, sorvetes, pães e bolos industrializados - Eduardo Knapp/Folhapress - Eduardo Knapp/Folhapress

Em sua coluna nesta Folha, no entanto, Bruno Gualano questiona o impacto negativo dos ultraprocessados na saúde ( "Alimentos ultraprocessados do bem?" , 1º/7). Para isso, volta ao clichê da análise de alimentos isolados. O texto defende que ultraprocessados não são todos igualmente nocivos, citando um estudo que associa subgrupos desses alimentos a uma menor incidência de diabetes. Segundo ele, existiriam, então, ultraprocessados aptos a compor uma alimentação saudável.

Especialista em fisiologia do exercício, Gualano se rende à prática do "nutricionismo" (nutrição + reducionismo). É a ideia de restringir a componentes menores —nutrientes ou alimentos isolados— o pensamento sobre a alimentação. Os mecanismos que associam ultraprocessados ao desenvolvimento de doenças vão além da mera composição nutricional.

Formulações industriais com pouco ou nenhum alimento de verdade, ultraprocessados são marcados pela destruição da matriz alimentar de seus ingredientes (em geral, commodities). Resultam em uma mistura de fragmentos —como o amido do milho e o óleo da soja— sem cor, sabor ou textura, o que exige a inclusão de aditivos cosméticos: os corantes, edulcorantes e emulsificantes, dos quais a ciência vem revelando efeitos nocivos a longo prazo.

 
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Excessos de açúcar e gordura conferem uma alta densidade energética, levando ao sobrepeso e à obesidade. Um ajuste fino entre esses ingredientes afeta os mecanismos cerebrais de recompensa, levando à adicção alimentar.

Importa, ainda, o que está ausente nesses alimentos, como os fitoquímicos de vegetais, atuantes na prevenção de doenças. Ou mesmo a textura: ultraprocessados são sempre macios, o que é deletério principalmente para crianças, cujo bom desenvolvimento depende da diversidade de consistências. Quem come ultraprocessados, aliás, acaba não comendo mais nada: eles substituem nossas refeições tradicionais.

Alimentação também envolve economia, política, ecologia. Gualano aponta que "ultraprocessados do bem" são caros e que os que chegam à mesa dos brasileiros são "o que resta de pior". Para além do preço, esses alimentos fomentam um sistema alimentar insustentável, incentivando grandes monoculturas, impactando a saúde ambiental e degradando culturas alimentares. Em um país rico e biodiverso como o Brasil, de onde brota comida de verdade, não faz sentido identificar opções menos piores de alimentos que têm, sem dúvidas, nos adoecido.

Carlos Augusto Monteiro
Coordenador emérito do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP)

Patricia Constante Jaime
Coordenadora científica do Nupens/USP e professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP (FSP/USP)

Maria Laura da Costa Louzada
Vice-coordenadora do Nupens/USP e professora do Departamento de Nutrição da FSP/USP

Renata Bertazzi Levy
Pesquisadora do Nupens/USP e do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP

 

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/08/ultraprocessados-do-bem-ideia-tao-vazia-quanto-esses-alimentos.shtml




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