monitorACT | Edição 14

03.06.22


ACT Promoção da Saúde

 

Editorial

Os artigos  desta edição do MonitorACT têm uma linha em comum que fica perceptível à medida que avançamos na leitura: tentam distinguir o que é real do que é sugerido como real. Como numa versão inspirada em O Mito da Caverna, estamos trancados no fundo de um lugar escuro, vendo sombras, e precisamos distinguir o que é o mundo de verdade, nos libertar das ilusões e correr para a luz. 

Abrimos com uma pergunta que, provavelmente, vai ficar sem resposta: O Metaverso será capaz de resolver os problemas reais? Neste texto, Vitória Moraes e Mariana Pinho sugerem incluir questões de saúde pública na discussão da integração da vida real ao mundo virtual, para que a representação gráfica da vida não se limite às estratégias de marketing de produtos que, a princípio, você não precisa e que, num prazo maior ou menor, vão fazer mal à saúde.

Uma vez que nada é o que parece ser, Bruna Kulik Hassan e Victória Rabetim  lançam mais dúvidas em artigo sobre a camuflagem que a indústria de alimentos faz em seus produtos. Em O que você come é o mesmo que você pensa que come?, podemos aprender sobre os limites da ética de algumas empresas, que estabelecem uma guerra para vender mais sanduíches apetitosos e suculentos, se esquecendo de um item fundamental: o ingrediente que faz esse produto ser realmente um sanduíche. Essa guerra, na qual quem acaba se ferindo é o consumidor, se estende também para o mercado de cigarros, com os novos produtos eletrônicos e de tabaco aquecido prometendo fazer o fumante parar de fumar e, no fundo, só acabam por viciar mais e mais pessoas.

É preciso olhar além da propaganda do produto e enxergar também a cadeia produtiva, se envolve desrespeito aos direitos humanos e impactos ambientais. Maria Paula Riva fez isso em Por trás da fumaça, há plástico, expondo os males do tabagismo desde a produção das folhas ao descarte de filtros e embalagens. Certamente você não sabia que 5% do desmatamento global estão relacionados à produção de fumo, podendo chegar a 30% nos países produtores, como o Brasil, e que filtros de cigarros, quando decompostos de forma inadequada, liberam microplásticos, metais pesados e outros produtos químicos, impactando a saúde e o ecossistema. 

Fechando a edição, Marília Albiero e Laura Cury trazem mais uma pergunta: Existimos, a que será que se destina?, título do evento que a ACT promoveu com representantes da sociedade civil, livremente inspirado no refrão da música Cajuína, de Caetano Veloso. Tal qual um mosaico tecido coletivamente, a conversa tocou em pontos dolorosos, como o crescimento das desigualdades sociais, o acúmulo de riqueza em poucas mãos e a falta de qualidade de vida para as populações das cidades mundo afora. Não há conclusões exatas nesta jornada, mas tudo aponta que o caminho é sair da caverna onde nos enfiamos e passar a enxergar as luzes de uma vida de verdade, capaz de garantir a humanidade que há em cada um de nós.

 

Boa leitura,

Anna Monteiro

Diretora de Comunicação

 


 

 

O Metaverso será capaz de resolver os problemas reais?

Vitória Moraes e Mariana Pinho

Criança asiática se sentindo animada ao usar fone de ouvido 360 vr para realidade virtual metaverse em casa Foto gratuita

 

O termo Metaverso é novo, a bola da vez no mundo da tecnologia. A ideia consiste em uma nova maneira de interação e comunicação entre as pessoas, na qual é possível integrar a vida real de maneira completa ao mundo virtual. A tecnologia permitiria a uma pessoa realizar atividades normais do cotidiano, como trabalhar, frequentar um show ou comprar algum produto, por meio de um avatar, que seria sua representação gráfica, em um contexto onde tudo o que vale na vida real passaria a valer na vida virtual, e vice-versa. Diante deste fenômeno, grandes corporações de diferentes setores já começaram a investir no Metaverso, incluindo representantes da indústria do tabaco, do álcool e de ultraprocessados. 

Nos primeiros meses de 2022, diversas empresas anunciaram uma série de intervenções no Metaverso, que convergiram com ações realizadas no mundo real. A Coca-Cola, por exemplo, já possuía a Coca-Cola Byte registrada como produto virtual da marca e veio a lançar sua versão real em abril, com a proposta de ter uma bebida que remeta ao consumidor o ambiente de jogos virtuais. A Heineken, por sua vez, anunciou o lançamento da nova Heineken Silver, primeira cerveja virtual da marca, que também teve sua versão real desenvolvida especialmente para o público mais jovem, com menos amargor e teor alcoólico reduzido. A Amstel, outra marca da cervejaria, anunciou a criação do ‘Amstelverso’, cuja inauguração contou com um pocket show da Pabllo Vittar, na vida real.

 

A ilha Pixel Point da Coca-Cola Byte dará acesso a quatro minijogos

 

As práticas adotadas pela Heineken mostram como as empresas conseguiram levar estratégias antigas para dentro deste novo universo, como é o caso de patrocínio de eventos e vinculação da marca com os nomes de determinados artistas. Porém, estamos falando de um universo que possui poucas medidas de regulação em relação à propaganda de produtos sabidamente nocivos à saúde, como o álcool, o tabaco e os alimentos ultraprocessados. 

Uma reportagem de O Joio e O Trigo traz a questão do ambiente alimentar digital, e afirma que postagens em redes sociais, utilização de algoritmos para direcionar anúncios de produtos específicos e a influência de determinados atores no mundo virtual podem impactar nas escolhas alimentares individuais. A Organização Mundial da Saúde, numa pesquisa a respeito de pessoas que vivenciam o mundo virtual diariamente, notou que este é um ambiente bombardeado por anúncios de alimentos e bebidas ultraprocessadas. Além disso, a OMS alerta para o tempo que se passa em frente às telas, tendo como consequência a redução dos níveis de atividade física e uma maior exposição ao marketing abusivo da indústria de alimentos.

Neste contexto, não podemos subestimar os dispositivos eletrônicos para fumar, como cigarros eletrônicos e tabaco aquecido. Alguns modelos permitem conexão via Bluetooth a aplicativos para celulares e podem ser utilizados para entretenimento. Certos recursos permitem que os fabricantes rastreiem e monitorem os usuários passivamente, desde o uso de bateria ao rastreio da quantidade e da frequência de cigarros fumados por dia. Em 2015, uma pesquisa da Truth Initiative verificou que jogar videogame era a segunda atividade de mídia favorita dos adolescentes, e 56% dos adolescentes jogavam videogame, computador ou jogos para celular em qualquer dia. Eles usavam em média duas horas e 25 minutos por dia nessa atividade. Mais de 40% dos jogos continham conteúdo relacionado ao tabaco,  segundo uma análise feita nos Estados Unidos com jovens e adultos jovens. É possível perceber que as ferramentas hoje disponíveis nesses dispositivos permitem que a crescente utilização do Metaverso leve a possibilidades infinitas e preocupantes, ainda mais sabendo que crianças e jovens têm fascínio por inovações tecnológicas.  

Para além dos impactos na saúde em nível individual, é preciso levar em conta o poder que as empresas de tecnologia possuem atualmente. O relatório Lucrando com a Dor, lançado recentemente pela Oxfam, expôs os lucros estratosféricos de setores como o tecnologia e o de alimentação durante a pandemia da Covid-19, na mesma medida em que milhões de pessoas ao redor do mundo sofrem com a miséria e a fome, causadas justamente pela acentuação das desigualdades sociais. Os grupos mais vulneráveis experimentam dificuldades no acesso a serviços de saúde e a alimentos de boa qualidade nutricional, promovidos pelas fabricantes em todos os ambientes, com uma falsa sensação de inovação. O enriquecimento das corporações implica, por outro lado, diretamente na manutenção das desigualdades e das relações assimétricas de poder e influência. 

 

Desigualdades sociais: entenda como surgem e por que elas se perpetuam |  Guia do Estudante

Uma pergunta que surge naturalmente ao organizar este artigo é: o Metaverso será capaz de resolver problemas reais? 

Algumas experiências mostram que a interação entre a tecnologia e a área da saúde é complexa, especialmente no que diz respeito à promoção da saúde. No entanto, tentativas têm sido feitas para promover serviços de saúde de forma virtual, mesmo antes de fazermos referência ao Metaverso. É o caso das ferramentas da OMS Florence e Pahola, especialistas virtuais em tratamento para deixar de fumar e em consumo de álcool, respectivamente.

As políticas públicas de promoção da saúde no mundo real deveriam se estender ao mundo virtual. A OMS recomenda que decisores políticos atuem em defesa de um ambiente virtual que promova hábitos de saúde mais saudáveis e regule a veiculação de posts e propaganda de produtos do tabaco, bebidas alcoólicas e alimentos ultraprocessados. 

Já pensou em um mundo real integrado ao virtual que favoreça escolhas saudáveis e proteja as pessoas de riscos? Aquilo que parecia ficção científica chegou com tudo e precisamos nos preparar para fazer desse universo um ambiente que promova a saúde, especialmente dos jovens, que serão o futuro desse planeta.

 


 

O que você come é o mesmo que você pensa que come? 

Bruna Kulik Hassan e Victória Rabetim

 

Se a gente pudesse atualizar o trecho “Carro sem estrada, Queijo sem goiabada, Sou eu assim sem você (...)” da canção de Claudinho e Buchecha, para um cenário mais parecido com os dias de hoje, seria algo como: Mc Picanha sem picanha, Whopper Costela sem costela, enganando a mim e a você.

Recentemente repercutiram na mídia vários casos de alimentos não-saudáveis batizados com nomes e embalagens que induzem o consumidor ao erro. A rede de fast food McDonald's lançou um hambúrguer com nome de picanha, cor de picanha, cheiro de picanha, mas sem picanha. Tradicional concorrente da marca, a rede Burger King fez algo bem parecido, um hambúrguer que dizia ter costela, mas na lista de ingredientes não aparece o tal corte de carne. Com consumidores cada vez mais atentos, rapidamente os fake hambúrgueres foram expostos e viralizaram nas redes sociais como memes, desencantos e cobranças da população.


 

Repercussão no Twitter sobre os fake hambúrgueres

 

Como resultado de tanta pressão popular, viraram alvo da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, e do Programa de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) de alguns estados. O Procon-SP notificou o McDonald’s pedindo a apresentação da tabela nutricional dos sanduíches e a composição de cada um dos ingredientes, além de documentos que comprovem os testes de qualidade realizados, a autorização de comercialização dos produtos junto aos órgãos oficiais e os termos das respectivas campanhas publicitárias. No Distrito Federal, o Procon foi mais rigoroso e proibiu a venda do lanche do McDonalds e do Burguer King. A pedido do senador Nelsinho Trad (PSD-MS), uma audiência pública foi conduzida no dia 12 de maio para que as redes se explicassem na Comissão de Controle, Transparência, Governança, Fiscalização, Controle e Defesa do Consumidor do Senado. Na audiência, o Diretor-Geral do Procon-DF, Marcelo Nascimento alertou sobre o direito à informação: “O consumidor não pode ser acusado de não ter feito uma boa escolha. Mas, sim, as escolhas dele são pautadas de acordo com que os produtos são lançados no mercado e da forma como isso é publicizado. O direito à informação também está previsto no nosso Código de Defesa do Consumidor, na Constituição Federal. Nós temos dois princípios básicos na defesa do consumidor que são o direito à informação, à informação precisa, à informação clara e também à não ser inserido no mercado de consumo uma publicidade enganosa.”

As partes mais interessadas da audiência, ou que deveriam ser, não compareceram. Tanto McDonald’s como Burger King alegaram por escrito que não realizaram propaganda enganosa e informaram a retirada dos sanduíches dos cardápios e futuras adequações para sua reinserção no mercado. Além disso, argumentaram que as informações eram claras e suficientes de forma que consumidores conseguiriam entender que os nomes se tratavam dos sabores dos sanduíches, e não dos seus ingredientes. Diante disso, é impossível não indagar: ainda há o que explicar ao Senado numa situação como essa ou essas empresas deveriam ser devidamente punidas por veicular publicidade claramente enganosa?

Para conter parcialmente o estrago publicitário, o Burger King  mudou o nome do sanduíche Whopper Costela para Whopper Paleta Suína, já que o hambúrguer contém apenas “paleta suína'' e "aroma de costela 100% natural”. Em nota à imprensa, afirmou que “a transparência para com os nossos clientes é um valor fundamental e inegociável para o Burger King”. Vale lembrar que, pouco antes desta confusão, ou enganação, a marca fez uma grande campanha publicitária sobre a retirada de “ingredientes artificiais” de 87,4% de seus produtos, alegando a preocupação de que as pessoas consumam comida de verdade. Não sabemos se há consenso entre o que o Burger King e a população brasileira consideram comida de verdade, mas se fizéssemos uma enquete com perguntas à população sobre o que reconhecem como comida de verdade, o tal hambúrguer com aroma de costela 100% natural muito provavelmente não entraria na lista.

 

Publicidade do Burger King divulgando a retirada de aditivos artificiais de alguns de seus produtos

O McDonalds decidiu tirar o hambúrguer de picanha do mercado, admitindo que o lanche não tinha picanha, mas sim “um blend de cortes selecionados” com um “exclusivo molho sabor picanha”. A escolha do nome McPicanha, segundo a rede, foi “justamente para proporcionar uma nova experiência ao consumidor”. Nas redes sociais, a rede se desculpou na tentativa de converter a publicidade negativa.

 

Pedido de desculpas do McDonalds nas redes sociais sobre seu McPicanha sem picanha

A prática de informar inadequadamente produtos aos consumidores não é nova e a lista parece crescer a cada dia. Com embalagens extremamente semelhantes, pode-se comprar um composto lácteo achando ser leite em pó, mas o que se leva é apenas 51% de leite, ou comprar uma mistura láctea acreditando ser creme de leite e receber um produto cheio de gordura vegetal hidrogenada, que não é permitida na composição do creme de leite. Quem sabe até comprar refresco com imagem de morango sem morango ou biscoito com mel sem mel? Tudo isso já é possível e as denúncias não param de chegar.

O grupo de biscoitos da marca Nesfit, fabricados pela Nestlé - com alegações de conter mel, mas sem apresentar mel na lista de ingredientes - teve denúncia de publicidade enganosa ao Procon-SP conduzida pelo Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), por induzir a erro em relação às características de um produto e, portanto, consistir em violação ao Código de Defesa do Consumidor. A denúncia foi resultado do monitoramento do Observatório de Publicidade de alimentos.

 

Segundo o Ministério da Agricultura, não basta informar: as embalagens não podem induzir ao erro. Já a Anvisa é mais criteriosa e deixa claro que se um produto traz em uma imagem em sua embalagem representando uma fruta, por exemplo, e ele não contém aquele alimento, está violando regras sanitárias. Mas dá um passo atrás ao destacar que a caracterização das irregularidades requer “avaliação do conjunto de informações contidas no rótulo, já que podem estar presentes alertas que permitam ao consumidor entender que a imagem apresentada não remete diretamente à composição do alimento”.

Em paralelo, outras empresas entram nesta mesma estratégia sorrateira de camuflagem e usam disfarces para vender seu produto com o discurso de redução de danos, como é o exemplo da indústria do tabaco com a comercialização dos dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs). Os fabricantes dizem que o produto é indicado para quem quer parar de fumar, mesmo sem nenhuma comprovação com evidências livres de conflito de interesses, para enganar o consumidor. Enquanto isso vemos uma nova doença surgir e seus casos explodirem entre jovens e adolescentes: o Evali, sigla em inglês para a doença inflamatória dos pulmões causada pelo uso de DEFs.

Como na Matrix do filme ou na Caverna de Platão, nada do que vemos é o que parece ser.


 



 

Por trás da fumaça, há plástico 

Maria Paula Riva

 

Foto mostra pássaro alimentando filhote com bituca de cigarro | Natureza |  G1

O aumento da produção e do consumo de plástico é um problema que afeta todos os países e que traz crescentes desafios para a sustentabilidade do planeta. É tão grave que, no Dia Mundial sem Tabaco, comemorado em 31 de maio, o tema foi eleito pela Organização Mundial da Saúde e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente como destaque. Tabaco: Ameaça ao Meio Ambiente pode causar estranheza a muitas pessoas, mas o fato é que, além da saúde e economia, a indústria do tabaco impacta negativamente também o meio ambiente.

Sabe-se que o tabaco mata mais de oito milhões de pessoas por ano no mundo, mas pouco se fala sobre os impactos ambientais causados por esses produtos, em particular sobre a questão da eliminação do plástico. Da produção das folhas ao descarte dos cigarros, em toda a cadeia produtiva do tabaco se produzem danos ambientais. Esses, por sua vez, contribuem para prejudicar ainda mais a saúde humana, em um círculo vicioso contrário à saúde pública.

No plantio de fumo, são utilizados diversos tipos de agrotóxicos, muitos deles classificados pelas autoridades sanitárias como tóxicos ou altamente tóxicos, que contaminam as águas, solo e o ar. Desmatamentos ocorrem com o objetivo de aumentar as áreas dedicadas à fumicultura, a ponto de ter um impacto estimado em 5% do desmatamento global, podendo chegar a até 30% do desmatamento em países produtores de tabaco, como é o caso do Brasil. A cura, processo da extração da água da folha do tabaco por meio da queima de lenha em estufas,  causa erosão do solo e esgotamento dos recursos madeireiros. 

 

Foto mostra pássaro alimentando filhote com bituca de cigarro | Natureza |  G1

 

Já o processamento e a fabricação dos cigarros envolvem o uso de produtos químicos tóxicos e a emissão de gases de efeito estufa, além de gerar resíduos. Na distribuição também são emitidos gases de efeito estufa.

O uso do tabaco, por sua vez, resulta em dois milhões de toneladas de resíduos sólidos de caixas e embalagens. Além disso, cerca de 19% a 38% do total de detritos coletados em limpezas oceânicas são de filtros de cigarros, e esse cenário só tende a piorar com a propagação dos cigarros eletrônicos e produtos de tabaco aquecido. Finalmente, e não menos importante, são os incêndios acidentais e florestais causados por cigarros não apagados: estima-se que nos Estados Unidos, de 8% a 10% dos incêndios são provocados por cigarros. 

A poluição por plástico é uma das três preocupações ambientais mais prementes, junto com as mudanças climáticas e a poluição da água, de acordo com uma pesquisa de 2019 incluída no relatório do Estudo de Caso de Negócios para um Tratado das Nações Unidas. Novos resíduos plásticos são produzidos anualmente a uma taxa de 303 milhões de toneladas, em todo o planeta. Até o momento, 75% de todo o plástico já produzido se tornou resíduo e a produção deve triplicar até 2050. Um novo estudo realizado em 2022 sugere que o acúmulo de resíduos plásticos nos oceanos também deve triplicar até 2040, em uma média de 32 milhões de toneladas (29 milhões de toneladas métricas) por ano. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, os filtros de cigarros, quando descartados de forma inadequada, são decompostos por fatores como luz solar e umidade e liberam microplásticos, metais pesados e outros produtos químicos, impactando a saúde e o ecossistema. 

 

Ducklings Pictured Eating Cigarette Butts Discarded On Nature Reserve -  UNILAD

 

Para a indústria do tabaco nada disso chega a ser uma novidade.  Apesar de produzir um produto nocivo à saúde das pessoas e do planeta, as empresas vêm dando grande destaque às suas próprias iniciativas de sustentabilidade, provavelmente com  o propósito de, mais uma vez, limpar sua imagem. O compromisso que assumem, geralmente voluntário, como os de recolher bitucas de cigarros, costuma ter pouco impacto na poluição ambiental causada por seus produtos, mas é bastante eficaz em promover a imagem da empresa como ambientalmente sustentável. Esse jogo não é feito só pela indústria do tabaco: a indústria alimentícia e do álcool também são conhecidas pelo uso de táticas para desviar a atenção do público sobre as próprias práticas prejudiciais ao meio ambiente, como é o caso das campanhas da Coca Cola com as garrafas pets, e da cerveja Corona, com a realização de torneio de pesca de plástico

Mas voltemos à indústria do tabaco, razão deste artigo. A Philip Morris lançou uma iniciativa que prega o descarte correto das bitucas para sua campanha institucional global Nosso Mundo Não é um Cinzeiro. A expressão popular “matar dois coelhos com uma cajadada só” não poderia ser mais apropriada nesse caso: não só essa campanha serve para fazer frente ao tema do Dia Mundial Sem Tabaco, mas também se nota o paralelo com outro slogan que a empresa vem tentando alavancar por meio de seus novos produtos de tabaco aquecido, o que preconiza um mundo livre de fumaça. Por trás dessa cortina de vapor, é possível enxergar que a empresa não quer livrar o fumante de produtos tóxicos ou proteger o planeta mas, ao contrário, pretende inundar todos os cantos com plástico derivado dos novos aparelhos e embalagens, e estimular crianças e adolescentes a vaporar. E bitucas continuarão a ser o velho problema.





 

Fonte: https://www.abcdacomunicacao.com.br/philip-morris-brasil-lanca-iniciativa-pelo-descarte-correto-das-bitucas-de-cigarro/ 

 

Isso não significa que ações individuais de coleta e reciclagem de lixo não sejam importantes. Entretanto, é crucial que novas e mais sustentáveis formas de produção sejam estabelecidas, em atendimento ao objetivo de desenvolvimento sustentável 12. Para isso, é  necessário que as empresas se coloquem de forma verdadeira como parte do problema e busquem formas de sanar os danos que causam. Precisam aceitar a regulamentação de seus produtos e de suas práticas,  e não somente se projetarem como parte da solução, com projetos que são visivelmente comerciais. 

Ações como as da Philip Morris são, em suma, insuficientes, e não resolvem o problema, de grandes dimensões e graves consequências. Saberíamos que suas intenções de mudança são genuínas, por exemplo, se defendessem a responsabilização das indústrias poluentes, com apoio a políticas públicas de regulação de produção de plástico pelas indústrias de tabaco, álcool e ultraprocessados. Outro ponto que certamente contribuiria para o manejo de resíduos plásticos seria o apoio a projetos de leis que restringem o uso de plásticos, principalmente os de uso único, tal como aprovado pela União Europeia pela Diretiva nº 904, de 5 de junho de 2019. Outra forma de mostrarem seu real compromisso com a poluição causada pelos produtos que produz seria aderindo às premissas do acordo da ONU para acabar com a poluição plástica até 2024. 

Contudo, como nada dessas medidas são levadas adiante, parece que as empresas pretendem seguir no mesmo modelo de negócio de embromar, o tal do Talking Trash que abordamos na edição passada. Apenas para se mostrarem. 

 


 

Existirmos: a que será que se destina

Marília Albiero e Laura Cury

 

Em seu último livro, Sonho Manifesto, o neurocientista Sidarta Ribeiro aborda o fato de que um grupo da espécie Homo sapiens, há cerca de 100 mil anos, fundou a linhagem que veio a conquistar todo o planeta. No entanto, esse mesmo Homo sapiens é uma espécie em contradição permanente, já que, por um lado, tem o dom de produzir tanto conhecimento e galgar conquistas impensáveis e, por outro, uma capacidade de destruição sem precedentes de seu habitat, além da opressão de seus semelhantes mais fracos.

Instigada a entender como chegamos até este aqui e agora que mais parece uma distopia, e refletir sobre como podemos ajudar a evitar o colapso da humanidade e do planeta, a ACT promoveu, em parceria com O Joio e O Trigo, o ciclo de debates "Existirmos: a que será que se destina? O poder das corporações e os futuros possíveis", reunindo representantes da academia e da sociedade civil organizada.

Nicholas Freudenberg, autor do livro A que custo? O capitalismo (moderno) e o futuro da saúde, lançado na ocasião, apresentou as grandes corporações transnacionais, que controlam inúmeros setores, como os de alimentação, tabaco e álcool, combustíveis fósseis, mídias sociais, entre outros. São entendidas como personagens centrais de uma história recente que presenciou diversos problemas de saúde  pública: a pandemia da Covid-19, claro, mas também a emergência climática, a poluição ambiental, o crescimento das doenças crônicas não transmissíveis e tantas outras. Essas corporações vêm acumulando drasticamente tecnologia, capital, poder político e influência em comparação com outros atores políticos. São, assim, capazes de manipular agendas em busca de benefício próprio, muitas vezes à custa da saúde e da sustentabilidade. Isso aumenta as inequidades econômicas e sociais que dividem países e povos.  

 

 

A percepção do economista e professor Ladislau Dowbor, que prefaciou A Que Custo? e foi um dos convidados do evento, corrobora a percepção de que o capitalismo moderno se tornou em grande parte disfuncional. Não faltam recursos, diz ele, nem informação ou tecnologia para construirmos um futuro melhor, mais saudável, justo e sustentável, mas é preciso definir a quem o capital serve. Assim, da forma como se estruturou, está com o “crescimento estagnado, centrado mais nas movimentações financeiras do que na produção, gerando uma desigualdade explosiva, drenando os recursos naturais de maneira destrutiva, impotente em se reorganizar frente a problemas como o aquecimento global, incapaz até hoje de se reinventar, preso na lógica da maximização de lucros corporativos a qualquer custo”. 

No mesmo mote, o economista Cláudio Fernandes foi outro convidado do encontro. Se Hobsbawm já atentou para diversas eras, cada qual com seus problemas a serem enfrentados, Fernandes comentou que presenciamos, hoje, uma “Era das Super Influências”, na qual  as corporações se agigantam cada vez mais, assim como o poder do lobby, se concentrando e migrando de forma rápida para o sistema financeiro internacional. Este, por sua vez, alcança um valor negociado maior do que 70 vezes o do PIB global, concentrando renda e ampliando desigualdades. Para continuar a ilustrar a dimensão dessa concentração, basta dizer que apenas 148 corporações dominam 80% da riqueza mundial, segundo pesquisa realizada pelo Credit Suisse. Isso significa que a sociedade tem diversos problemas a resolver, como dívidas públicas crescentes que reduzem espaço fiscal para investimentos, como os tetos de gastos, que atinge saúde, educação e assistência social no Brasil, privatização de serviços públicos essenciais e tantos outros. Na era das Super Influências das corporações, nem mesmo as grandes instituições globais, como as Nações Unidas e suas agências, conseguem frear o crescimento de concentração de poder.

Para quem acreditou, durante um tempo, que a pandemia da Covid-19 poderia ser um ponto de inflexão, uma grande oportunidade, embora muito triste, dada à humanidade para recomeçar melhor a partir de seus erros e aprendizados, a pesquisadora Melissa Mialon jogou um balde de água fria numa plateia que já estava num ambiente gelado de outono em São Paulo. Usando marcos temporais como a Segunda Guerra Mundial e a crise econômica de 2008, Mialon traçou paralelos com a situação atual para exemplificar como corporações apropriam-se de graves crises, aliam-se ou pedem ajuda financeira ao Estado, e tornam-se ainda mais ricas, e mais fortes. Enquanto isso, a sociedade se recupera do choque e, em maior estado de vulnerabilidade, aceita o que poderia ser inaceitável em outras circunstâncias. O raciocínio de Mialon é fundamentado pelas reflexões de outros pesquisadores que já se debruçaram sobre o tema, como a jornalista Naomi Klein, autora do livro  “Doutrina do Choque no Capitalismo Contemporâneo”, publicado no Brasil pela Editora Nova Fronteira.

Durante períodos de crise, sejam eles de pandemia, desastres naturais, recessão financeira, as grandes corporações, com dinheiro e poderio o suficiente para resistir no  curto prazo, fortalecem seus relacionamentos com formuladores de políticas e melhoram sua imagem perante o público em geral por meio de ações consideradas de responsabilidade social corporativa, na qual muitas vezes parecem oferecer soluções para problemas que elas mesmas ajudam a criar. Nos últimos anos, estamos experimentando uma divulgação grande, por parte de empresas e fundos de investimento, de atividades ditas ESG, da sigla em inglês para ambiental, social e governança, que deveriam traduzir um comprometimento real com o desenvolvimento sustentável. Entretanto, como já discutido em edições anteriores deste Monitor ACT, muitas dessas iniciativas levam a poucos resultados efetivos e acabam por criar apenas uma boa imagem para as empresas, algumas vezes até mesmo limpando a reputação de algumas delas.

 

capitalismo

 

Por isso, é fundamental refletir sobre os tipos de parcerias com o setor privado que podem, efetivamente, ajudar a resolver problemas de caráter público. Durante um dos encontros do Fórum de Sistemas Alimentares, conduzido pelo sistema ONU em 2021, o economista Jeffrey Sachs afirmou que o setor privado precisa se comportar, seguir as regras estabelecidas e pagar seus impostos, o que já seria um grande avanço para os países. Não deixa de ser verdadeiro, e simples.

O que observamos em nosso encontro é que, diante de ausência de regulações específicas e de fiscalização de práticas corporativas, ainda temos muito que avançar, inclusive para criar ferramentas que auxiliem as organizações a analisar o risco-benefício de parcerias com o setor privado, principalmente quando consideramos sua dimensão e força, tornando-o uma peça imperativa no jogo de xadrez que é a agenda de reconstrução pós pandemia.

Apesar do cenário distópico apresentado no início do evento e deste texto, é preciso vislumbrar a consequência dos nossos atos, assim como novos caminhos possíveis para trilhar. Um sonho pode atuar como um farol para nos guiar rumo a um futuro melhor, como crê o neurocientista Sidarta. Desde tempos ancestrais, sonhos são compreendidos como tendo um poder premonitório, e, de fato, eles aumentam nossa capacidade de adaptação e sobrevivência.

Foi como sonho coletivo que o encontro se encaminhou para o fechamento, com a líder indígena Jerá Guarani e sua fala resgatando a ancestralidade. Para ela, a simplicidade dos povos tradicionais pode ensinar muito às pessoas tradicionalmente consideradas “civilizadas”. Jerá comenta que povos indígenas, por exemplo, têm mecanismos e experiências para compartilhar, mostrando que outra forma de viver é  possível para os Jeruas,  termo utilizado para se referir às pessoas não indígenas, em Guarani Mbyá. Para ela, é necessário desacelerar e repensar, porque os modos contemporâneos de viver estão piorando a situação já degradada dos povos e do planeta.

E é com um futuro possível imaginado por Freudenberg e citado por Dowbor no prefácio de A Que Custo, que fechamos este texto:

 

Imagine, se puder, um mundo no qual o bem-estar das pessoas e do planeta seja a prioridade.

 

Imagine um sistema alimentar que torne os alimentos saudáveis, cultivados de maneira sustentável e produzidos por trabalhadores dignamente remunerados, disponíveis e acessíveis a todos.

 

Imagine escolas e universidades que forneçam a todos os alunos os conhecimentos e habilidades de que necessitam para atingir seu pleno potencial e contribuir para com suas comunidades e o mundo, e usar sua educação em busca de bem-estar e felicidade para si e para os outros.

Imagine um sistema de saúde acessível a todos, que faça da prevenção de doenças e da melhoria da qualidade de vida seus maiores objetivos e ofereça cuidados que permitam aos pacientes minimizar a carga das doenças que eles enfrentam e a dor e o sofrimento por elas impostos.

Imagine um emprego que pague aos trabalhadores o que eles precisam para uma vida decente; que garanta que o trabalho não adoeça ou prejudique os envolvidos; que contribua para um mundo melhor e mais sustentável; que ofereça caminhos para o progresso; e que permita que os trabalhadores se sindicalizem, façam seu trabalho e desfrutem da vida pessoal e familiar fora do trabalho.

Imagine um transporte que facilite a circulação de todas as pessoas em seus bairros, cidades e outros lugares; e que deixe nossas ruas acolhedoras para o homem, nosso ar, seguro para respirar, e nosso planeta, apto para a vida.

Imagine, finalmente, uma maneira de se conectar com as pessoas ― família, amigos, colegas, empresas, nossas comunidades e o mundo ― que não exija o sacrifício da saúde mental, da autoconfiança, da privacidade, da dignidade, da paz cívica ou do acesso comercial aos detalhes mais íntimos de nossas vidas”.

 



 

Ficha Técnica

Revisão e edição: Anna Monteiro

Arte: Ronieri Gomes

Colaborou nesta edição: Maria Paula Riva

Equipe de monitoramento

Anna Monteiro

Bruna Hassan

Camila Maranha

Denise Simões

Emily Azarias

Fabiana Fregona

Laura Cury

Mariana Pinho

Marília Albiero

Victoria Rabetim

Vitória Moraes

 




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